Antes de ir adiante, uma tentativa de definição. A expressão doutrinador, de uso corrente na prática espírita, parece algo inadequada, ou, pelo menos, incompleta, sendo admitida apenas à falta de outra mais precisa. Isso porque, na realidade, aquele que se incumbe de falar aos Espíritos manifestantes não está limitado exclusivamente a doutrinar, isto é, instruí-los quanto à Doutrina Espírita em particular. Seu objetivo é bem mais amplo e menos específico, dado que, antes de qualquer instrução ou doutrinação propriamente dita, o Espírito em crise necessita de acolhida paciente, amorosa, compreensiva, de socorro mais urgente e imediato, de tratamento de emergência que o coloque em condições de pelo menos compreender a sua posição, Por outro lado, parece igualmente inadequado posicionar aquele que dialoga com os Espíritos manifestantes como diretor ou dirigente dos trabalhos. Ele não passa de um dos componentes do grupo com atribuição específica, tal como os médiuns - psicofônicos, psicográficos, videntes ou de cura - e os que emprestam ao grupo o apoio silencioso, sem mediunidade ostensiva. De todos eles, indistintamente, precisa o grupo. Todos devem estar sintonizados com o Mundo Maior e harmonizados entre si mesmos, inteiramente voltados para as tarefas de que foram incumbidos.
As informações que hoje temos, com riqueza de pormenores, sobre o relacionamento entre o mundo dos desencarnados e o nosso, confirmam e ampliam o que os princípios da codificação deixaram estabelecidos. O chamado dirigente é apenas a pessoa que no plano dos encarnados coordena os trabalhos que ali se desenrolam. Mantém-se usualmente em estado de vigília e alertamento para melhor acompanhar o que ocorre à sua volta, dado que qualquer forma de mediunidade que provocasse seu alheamento poderia dificultar sua atuação. Por isso, deve estar sempre atento às sugestões e recomendações que recebe por via intuitiva dos verdadeiros dirigentes do grupo, que são os Espíritos mais experimentados do mundo invisível. Dessa forma, o doutrinador não é, usualmente, dotado de mediunidade ostensiva. Quando muito, dispõe de alguma vidência ou audição. A via de comunicação mais intensamente utilizada pelos seus mentores é a da intuição, que, com a prática, se desenvolve de maneira satisfatória. É preciso, para tanto, preparar-se continuamente, por meio da prece, da purificação interior, da meditação, a fim de conseguir captar os “flashes” rápidos que recebe do mundo espiritual, enquanto atende seus companheiros desencarnados. É claro também que, no decorrer das tarefas mediúnicas, o padrão vibratório de todos os componentes do grupo é elevado pela concentração e pela atuação dos técnicos espirituais, a fim de afinar os trabalhadores encarnados com os desencarnados, buscando estabelecer entre eles uma aproximação que possibilite o intercâmbio.
Mas, afinal, que nome proporíamos em lugar de doutrinador ou dirigente? Instrutor? Monitor? Bem. É preciso confessar que a esta altura tão generalizado se encontra o uso da palavra doutrinador que a discussão se torna algo acadêmica. O objetivo desta digressão foi apenas mostrar que o trabalho do doutrinador nos grupos mediúnicos não é propriamente o de transmitir aos Espíritos desajustados instruções doutrinárias pura e simplesmente, consistindo antes em acolher irmãos mergulhados na dor, na revolta, na angústia, na ignorância, na alienação, na desorientação e, até, muitas vezes, na total inconsciência de si mesmos. Muitos desses Espíritos, senão a maioria deles precisa de primeiros socorros urgentes. Trazem angústias e desordens seculares, às vezes, que não se apagam com um passe de mágica. Precisam de tempo para se colocar em condições de receber instruções e esclarecimentos que os habilitem ao prosseguimento da jornada evolutiva. No estado de choque emocional em que estão se tornam, às vezes, inacessíveis até mesmo à voz do doutrinador, prosseguindo como surdos no alucinante monólogo da dor, girando incessantemente em torno de um núcleo interior.
Os grupos mediúnicos que se dedicam, pois, ao trabalho de atendimento espiritual, funcionam como postos avançados de pronto-socorro, ambulatórios de primeiros cuidados, recebendo seres que se desequilibraram seriamente e se perderam pelos escuros desvãos de regiões onde imperam a revolta, o ódio, a dor, a aflição em graus superlativos. Por isso, os povos da língua inglesa chamam a essa atividade de “rescue work”, ou seja, trabalho de resgate. É realmente o que se passa. Por mais graves que sejam as faltas cometidas pelo Espírito, chega afinal o momento do resgate. Abnegados e competentes companheiros do mundo espiritual descem então às furnas da dor para trazê-los aos postos de atendimento. Não é fácil esta missão, porque aqueles que adquiriram domínio sobre a vítima não desejam liberá-la de maneira alguma e se defendem e reagem com inaudita violência. Tais seres, secularmente endurecidos no mal, dispõem de poderes consideráveis, comandam organizações inteiramente voltadas à prática da violência e da opressão organizadas, a serviço das suas paixões incontroladas. É difícil e arriscada a retirada de alguém que esteja aprisionado nesses autênticos infernos. O trabalho é realmente de resgate.
Trazidos, pois, aos grupos mediúnicos, os pobres irmãos que já perderam a noção do tempo e, muitas vezes, até a consciência de si mesmos, não oferecem condições de diálogo fácil. Não estão ainda em posição de serem doutrinados.
Mais difíceis, porém, são aqueles que exercem no mundo das trevas essa terrível liderança de opressão. São Espíritos prepotentes, acostumados ao mando incontestado, inteligentes, sutis, envolventes, violentos, que há séculos não experimentam um sentimento de piedade, de afeição ou de paz. Vivem num processo contínuo de alucinação, inteiramente voltados para o livre exercício de suas paixões. Têm, no entanto, nítida consciência de suas responsabilidades. Conhecem as leis divinas e sabem como, onde e por que a estão desrespeitando. Sabem das consequências da rebeldia e sabem que um dia, afinal, não importa quando, terão de enfrentar a dura realidade do resgate.
Nada disso, porém, importa, porque enquanto se acharem envolvidos no processo da vingança, do ódio, da violência, estão ao abrigo da dor maior do arrependimento. Sabem disso muito bem. Suas organizações são fundadas em estrito regime disciplinar e hierárquico e sabem que, enquanto ali estiverem, estarão sob a proteção da própria violência. Enquanto infligem à dor aos outros, esquecem-se das próprias, num processo de auto anestesia da sensibilidade. Protegem-se a todo custo de qualquer aproximação amorosa, de qualquer movimento conciliador, de qualquer socorro através da prece. Quando as equipes do bem conseguem resgatar algum tutelado que considerem importante, ou interferir de maneira decisiva ferir de maneira decisiva nas suas atividades, dificultando-lhes o trabalho impiedoso e os planos de longo curso, ficam alucinados de ódio e se atiram com todos os seus recursos à vingança, à tentativa de aniquilamento e destruição dos que ousaram perturbar o andamento de suas tarefas. Ai daquele que se atreve a interromper um processo de obsessão, ou a subtrair uma vítima inerme das garras do seu verdugo implacável!
Nesse estado de exaltação e rancor é que costumam manifestar-se através de médiuns dedicados. Por isso, os grupos mediúnicos precisam estar muito bem preparados e protegidos pela prece, pelas boas intenções, pelo sentimento de fraternidade. Têm de contar com muito boa assistência das mais elevadas entidades espirituais e com a presença de Espíritos que conheçam profundamente os mecanismos que se põem em movimento para que se realize uma sessão espírita.
O trabalho do doutrinador é, então, altamente crítico. Sua atitude mental e emocional, sua posição espiritual, seus conhecimentos doutrinários, sua familiaridade com os processos mediúnicos são de vital importância, dado que por um simples descuido seu muitas dores angustiantes podem ter o seu fim adiado por tempo indeterminado.
Em primeiro lugar, o doutrinador nunca sabe que tipo de Espírito se aproxima, em que condições e com que problemas. Desconhece de início, suas intenções e propósitos. Sabe, por outro lado, que o ser manifestante pode levar a grande vantagem inicial de estar na posse de conhecimentos do lado espiritual da vida de que ele, doutrinador, não dispõe. Persegue-se, oprime, ou obsidia alguém que o grupo foi incumbido de tentar socorrer, o perseguidor vem munido de fatos que os encarnados desconhecem. Sabe dos antecedentes do processo, está convencido da legitimidade de seu direito de perseguir e odiar. De certa forma, não deixa de ter alguma razão, porque a lei divina que protege a todos nós foi desrespeitada por aquele que o feriu no passado. Foi aquele mesmo que agora o grupo pretende proteger, e para quem se pede perdão e piedade, que lhe roubou a esposa, que o arruinou, que o levou ao crime, à vergonha, à miséria, à desonra. Foi aquele que lhe tirou a vida, que o traiu na sua confiança, que o levou ao desespero e ao suicídio.
Os primeiros apelos ao perdão não lhe fazem o menor sentido. No seu raciocínio deformado, o próprio Deus permitiria a vingança porque se Deus não o quisesse nada daquilo seria possível. Ou, então, ele não acredita na justiça divina e resolveu tomar a vingança em suas próprias mãos. Não venham, pois, pedir perdão para quem o arrasou. Precisavam ver que monstro foi aquele que agora comparece em lágrimas para implorar socorro! ...
De outras vezes, o processo da perseguição e da opressão tornou-se, por assim dizer, impessoal. O Espírito violento e arbitrário não se interessa pessoalmente pela sua vítima. Ele faz parte de uma organização com objetivos bem demarcados e com planejamentos em longo prazo; recebe uma tarefa específica que lhe cumpre desempenhar com dedicação e rigor, seja quem for à vítima, porque do bom desempenho do seu trabalho depende sua promoção na escala hierárquica da organização a que serve, como em qualquer instituição humana que premia aqueles que lhe são úteis e fiéis. Recebem condecorações e galgam postos importantes na medida em que se destacam no trabalho bem feito, ou seja, quanto mais eficientes forem nas odiosas e lamentáveis tarefas a que se entregam. A estes também não adianta o apelo à clemência. São frios executores de um planejamento global. Não se sentem nem mesmo responsáveis ou culpados pela dor que infligem, porque, segundo dizem, apenas cumprem ordens superiores. Se há culpa, não lhes cabe nenhuma parcela e sim aos seus mandantes. Foram treinados para isso e condicionados a esse procedimento. Dão sempre as mesmas respostas e têm atrás de si a segurança que julgam incontestável da terrível organização a que pertencem.
Quanto aos que planejam, colocados, evidentemente, em plano superior de inteligência e conhecimento, também não se julgam responsáveis. São meros teóricos. Não executam ninguém, não julgam ninguém: limitam-se a traçar os programas estratégicos de ação; não descem aos pormenores da execução propriamente dita.
Há, ainda, os terríveis juristas do Espaço. Estes também, autoritários e seguros de si, exoneram-se facilmente de qualquer culpa porque, segundo informam ao doutrinador, cingem-se aos autos do processo. Em sua opinião, qualquer juiz terreno, medianamente instruído, proferiria a mesma sentença diante daqueles fatos. Todo o formalismo processualístico ali está: as denúncias, os depoimentos, as audiências, os pareceres, os laudos, as perícias, os despachos e, por fim, a sentença - invariavelmente condenatória. E até as revisões, e os apelos, quando previstos nos “códigos” pelos quais se orientam (ou melhor: se desorientam).
Muitos se dizem trabalhadores fiéis do Cristo e lutam denodadamente pelo restabelecimento de sua “verdadeira igreja”. Citam os mesmos textos evangélicos para dizer coisas diametralmente opostas à lei universal do amor e da tolerância que o Cristo pregou. Se advertidos quanto à violência que empregam, invocam invariavelmente a cena da expulsão dos mercadores do templo.
É difícil o trato com esses irmãos desesperados. Não podemos recebê-los como celerados, mas como companheiros doentes que se comprometeram profundamente ante as leis de Deus. Não podemos responder à sua violência com a nossa. Por outro lado, muitos são os que se tornaram inacessíveis à linguagem de excessiva doçura, pois algumas verdades precisam e devem ser ditas a eles. Mas como? Que verdades? O que lhes convém dizer? De que maneira? Pouco sabemos deles, a não ser o que eles próprios revelam no diálogo penoso e fragmentário que se desenvolve. O melhor é deixá-los falar por algum tempo, depois de recebê-los amorosamente, com o Espírito desarmado e atento, tranquilo e vigilante. Pouco a pouco, vão revelando suas motivações e impulsos. Qual o momento de interferir com uma palavra mais firme? Será agora, desta primeira vez, ou convém esperar um pouco mais? Devemos dar-lhe um passe? Qual o melhor momento para a prece? Quais são as razões profundas da sua dor?
No fundo há sempre a dor que eles, naturalmente, não admitem. Mas, fogem dela, procurando esconder-se de si mesmos. Quando lhes dizemos que a razão do sofrimento está no seu próprio passado, reagem energicamente à ideia de uma incursão pelos porões da memória, porque regra geral sabem muito bem que lá é que se escondem as raízes profundas das suas angústias e não se julgam ainda preparados para identificá-las. E se no fundo do ser está à dor, lá também está o amor, porque são legião aqueles de nós que nos despenhamos nos abismos da dor pelo amor frustrado, traído, maculado, e de lá saímos pelo amor restaurado, compreendido, redimido. Que tremenda força tem esse sentimento que constitui a essência mesma de Deus! Nos corações mais duros, mais frios, mais implacavelmente voltados ao ódio, remanesce sempre, invariavelmente, a chama adormecida de amores milenares, talvez esquecidos, quase sempre soterrados nas cinzas dos séculos, mas ainda vivos. Cabe-nos descobrir naquele mar tormentoso de paixões desencadeadas o remanso tranquilo onde se depositou o amor. Se tivermos paciência e sabedoria para esperar o momento certo e soprar amorosamente o coração chagado pela angústia, veremos que debaixo da cinza dormitam fagulhas que um dia reacenderão aquela chama dourada do amor que aquece sem queimar e que ilumina sem ofuscar. Há sempre, alhures, naquele tumulto interior, a memória querida de uma dedicada mãe, de um filho inesquecível, de uma esposa muito amada, de um irmão, de um amigo que parecia esquecido.
A despeito disso, o Espírito atormentado se defende, porque, consciente ou inconscientemente, ele sabe que, se “fraqueja”, ou seja, se abrir a menor fresta à penetração da luz, todo o seu interior se iluminará e ele não poderá mais impedir que as suas pesadas culpas se identifiquem e se apresentem diante da sua consciência atribulada.
Cabe ao doutrinado dizer a palavra oportuna, no momento exato. Precisa ser doce e humilde, mas também positivo e firme. Sua própria autoridade moral é importante, porque o Espírito que o enfrenta respeita-o por isso, mas quem de nós na Terra, nas lutas contra imperfeições e mazelas que remanescem teimosamente, tem condições morais para impor-se ao pobre irmão que sofre? Muitas vezes ele sabe de nossas fraquezas tanto quanto nós. Ele nos vigia nos observa nos analisa, nos estuda de uma posição vantajosa para ele, na invisibilidade. Segue-nos nas nossas atividades diárias, acompanha-nos ao trabalho. Vê como agimos com os semelhantes e por aí afere a nossa personalidade e propósitos. É fácil para ele apurar se no nosso relacionamento humano agimos dentro da mesma moral que pregamos a ele. Ele percebe mais as nossas intenções, a intensidade e sinceridade do nosso sentimento do que o mero som das palavras que pronunciamos. Se estivermos recitando lindos textos evangélicos sem a sustentação da afeição legítima, ele o saberá também. E é preciso ter muito amor a dar, para distribuí-lo assim, indiscriminadamente, a qualquer companheiro espiritual que se manifeste.
Muitas vezes, o médium doutrinador não se encontra na sua vida de encarnado cercado pelo sentimento de afeição de familiares e companheiros. Tem seus parentes, vive rodeado de conhecidos no ambiente de trabalho, mas não conta com grandes afeições e dedicações. A sustentação do seu teor vibratório no campo do amor deverá vir de cima e, para isso, precisa estar ligado aos planos superiores que o ajudam e assistem a distância. Sem amor profundo, pronto na doação, incondicional, legítimo, sincero, é impraticável o trabalho mediúnico realmente produtivo e libertador. Esse dispositivo emocional, afetivo, precisa estar solidamente conjugado com boa dose de conhecimento doutrinário, adquirido não apenas na prática prolongada, na observação atenta dos fenômenos e mecanismos envolvidos, mas também no estudo repetido, contínuo dos textos elucidativos da Doutrina Espírita. Ninguém deveria aventurar-se a esse trabalho sem preparo prévio. Ê claro que um coração amoroso, habituado a doar-se sem reservas ao semelhante, supre em grande parte o despreparo doutrinário. Numa situação mais crítica, porém, diante de um Espírito mais artificioso, intelectualmente bem preparado e amoral, podem resultar embaraços bastante penosos para o doutrinador, os quais, de tão sérios, às vezes chegam a acarretar a desagregação do grupo.
Acontece, - também, que alguns dos Espíritos que se apresentam diante de nós conhecem-nos do passado mais recente ou mais remoto, de outras encarnações alhures. Sabem de nossas tendências, conhecem mais de nossa história pregressa do que nós mesmos e fazem bom uso de seus conhecimentos. Vendo-nos hoje a falar-lhes como santarrões, que ainda não somos, vêm-lhes à lembrança as figuras hediondas que fomos ao passado. Odeiam-nos, às vezes, pelas nossas crenças ou descrenças, pela oposição em que nos colocamos no passado, ou no presente. Esses ódios e rancores são particularmente dramáticos quando estamos em campos religiosos opostos.
Poucas paixões são tão persistentes e nefastas como essas. Permanecemos, com frequência, agarrados durante séculos inteiros às mesmas ideias religiosas, insuscetíveis de evolução, refratários a elas, inimigos delas. E os que nos conheceram como “bons” religiosos no passado, isto é, fanáticos, e nos veem hoje ligados a um movimento “herético”, como classificam o Espiritismo, nos detestam veementemente, mesmo que nada lhes devamos em termos cármicos. O ódio deles é pronto, verbal, agressivo, irracional. Estão convictos de defenderam a pureza dos dogmas a que se aferraram tenazmente e tudo e todos quantos se lhes oponham devem ser removidos a ferro e fogo, a qualquer custo, por amor do Cristo, dizem, de quem se julgam trabalhadores fiéis. E quantas vezes, mergulhando no passado distante, acabam descobrindo que ajudaram a cravar um prego nas mãos do Mestre, de quem se julgavam defensores intransigentes!
Chega, então, o momento difícil e doloroso da crise. Desarma-se subitamente toda a estrutura da proteção, da defesa. O Espírito não pode mais fugir de si mesmo. A tarefa que vê à frente é gigantesca, pois aquele que desceu para os abismos, espalhando dores e espinhos, tem de retraçar os seus passos- e não encontrará pelos caminhos de retorno outra coisa senão espinhos e dores. Mesmo assim, tem de palmilhá-lo, inapelavelmente, pois não há outro roteiro...
O primeiro impulso de ódio é ainda contra o doutrinador. Ele é o agente da sua dor, é aquele que teve a audácia de despertá-lo e, como qualquer um de nós, ele reage contra aquele que o sacudiu e o arrancou da anestesia cômoda do sono profundo que o isentava da dor. Terminou a fuga e o primeiro momento é absorvido pela revolta. Depois vem o duro choque da realidade, o arrependimento, a terrível sensação de esmagamento ante a magnitude de suas culpas e das tarefas de recuperação que o esperam. É um ser arrasado, um trapo humano que não pode mais fugir de si mesmo, nem desaparecer no não-ser. Ele sabe que a vida continua inexoravelmente.
É chegado o momento em que o doutrinador tem de se portar com a maior grandeza e tato. Tem de evitar o agravamento das dores, a implantação do desânimo, o esmagamento pelo rolo compressor do arrependimento. Não pode o doutrinador apresentar-se como cobrador da lei, nem como aquele que venceu, afinal. Ao irmão que ali está, mais do que nunca deve servir, oferecer o braço amigo, ainda que também fraco e imperfeito; colocar à disposição do companheiro tão fundamente atingido o abrigo precário e provisório de seu próprio coração, assegurar-lhe o amparo de companheiros mais esclarecidos e competentes, mostrar-lhe que o caminho é longo, mas é possível, é necessário, é o único; que ele terá repouso e instrução. Será preparado para as tarefas que o esperam, reencontrará afeições profundas que pareciam esquecidas. Não se deve afligir ante a aspereza da dor, porque as leis divinas não dosam o resgate acima das nossas resistências e possibilidades. Que chegou, afinal e graças a Deus, o momento da verdade, quando os nossos passos deixam de nos aprofundar nos escuros caminhos da angústia, para nos dirigirem à escalada na direção da paz. Tenha o irmão confiança em si e nos poderes superiores que velam por nós todos. É também chegado o momento da prece de recomendação e despedida. Se antes oramos para encontrar o caminho de seu coração, agora oramos para que ele o siga amparado pelos que o amam e há tanto tempo esperam por ele. Há sempre uma mãe carinhosa ali, ou um filho esquecido, ou uma companheira amada que os séculos guardaram para nós.
E enquanto agradecemos a Jesus por mais um Espírito que, por nosso intermédio, se entregou aos trabalhadores da luz, voltamo-nos para outro médium para receber novo irmão desarvorado a deblaterar enraivecido e alucinado, sem saber ainda que está desesperado pela salvação. Talvez Jesus permita que possamos recolhê-lo também. Recomeça o ciclo: vigilância, paciência, ternura, compreensão, firmeza, lealdade, humildade, amor, amor, amor...
É o que o mundo espiritual espera de nós. Lembremo-nos disso, quando nos sentarmos em torno da mesa de trabalho. E o Cristo não se esquecerá de nós...
Hermínio C Miranda
Reformador (FEB) Abril 1970
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