A letra mata, mas o espírito vivifica (Paulo, 2Cor 3,6)
A maior ignorância é a que não sabe e crê saber, pois dá origem a todos os erros que cometemos com nossa inteligência. (Sócrates).
Introdução:
Não fosse trágico seria até hilariante, pois os que tomam tudo ao pé da letra, não se dão conta de que, muitas vezes, caem no ridículo. É o caso daqueles que acreditam que os mortos estão dormindo. Bibliólatras desse tipo não abrem mão da literalidade bíblica e, se os pedirmos, apontarão inúmeras passagens para corroborar a sua forma de interpretação. Via de regra, são pessoas que só lêem livro com o referendo de sua liderança religiosa, não sabem que: “quem ouve um só sino, nem mesmo poderá saber se ele está desafinado” (......) Cabe-nos, por compromisso com a verdade, demonstrar que pensam erradamente, entretanto nosso objetivo não é convertê-los, já que dificilmente abrirão mão do que pensam, mas explicar aos de mente aberta como deveriam ser interpretadas as passagens que falam sobre isso.
Textos base
No sentido que estamos a questionar, a palavra “dormiu” aparece, na Bíblia, 35 vezes [[1]], concentrando sua maioria no livro dos Reis (I e II) e no de Crônicas (II). Para evitar a repetição, citaremos apenas os seguintes exemplos:
1Rs 2,10: Depois Davi dormiu com seus pais, e foi sepultado na cidade de Davi.
1Rs 11,43: E Salomão dormiu com seus pais, e foi sepultado na cidade de Davi,...
1Rs 14,20: E o tempo que Jeroboão reinou foi vinte e dois anos. E dormiu com seus pais;...
1Rs 14,31: E Roboão dormiu com seus pais, e foi sepultado com eles na cidade de Davi...
1Rs 15,8: Abião dormiu com seus pais, e o sepultaram na cidade de Davi...
Se falássemos de alguém usando uma destas expressões: abotoou o paletó, apagou, bateu as botas, bateu a caçoleta, comeu capim pela raiz, desceu ao túmulo, desocupou o beco, disse adeus ao mundo, embarcou deste mundo para um melhor, empacotou, entregou a alma ao Diabo, entregou a rapadura, espichou a canela, esticou o cambito, fechou o paletó, fechou os olhos, foi para a cidade dos pés juntos, foi para a Cucuia, foi para o beleléu, passou desta para melhor, pifou, vestiu o paletó de madeira, vestiu o pijama de madeira, virou presunto, o que se entenderia? Iríamos tomá-las ao pé da letra ou entendê-las no sentido figurado? Sabemos que muitas palavras assumem significado diferente do sentido normal, para assumir um outro, quer pelo uso comum, quer por ter se tornado uma gíria, por isso devemos ter o cuidado de verificar qual é o seu verdadeiro sentido no texto. De igual modo vemos nessas passagens, em relação à palavra dormir, que não há outra maneira senão de interpretá-la como morrer, portanto, não quer dizer que alguém literalmente esteja dormindo.
Pesquisando essas passagens em outras Bíblias encontramos em lugar de dormiu o seguinte: repousou, morreu, adormeceu, desceu ao sepulcro, descansou, deitou-se e foi reunir-se, deixando claro que se trata apenas de expressões para designar mesmo a morte.
Por outro lado, se matematicamente, na multiplicação, a ordem dos fatores não altera o produto, aqui não vale essa proposição. A ordem é: primeiro dormiu, depois foi enterrado, onde forçosamente o significado de dormir é morrer, e não foi enterrado e dormiu, que muito bem poderia ser entendida como os bibliólatras entendem em relação à outra forma.
Passagens que contrariam esse entendimento
Quem examina a Bíblia, e não apenas lê, percebe que a idéia que os judeus faziam da vida após a morte era imprecisa. Pensavam que todos os mortos, bons e maus, iriam para o sheol (=hades ou inferno), lugar onde não teriam mais consciência, daí autores bíblicos dizerem:
“Farás maravilhas pelos mortos? As sombras se levantarão para te louvar? Falarão do teu amor nas sepulturas, e da tua felicidade no reino da morte? Conhecem tuas maravilhas na treva, e a tua justiça na terra do esquecimento?” (Sl 88,11-13).
“Os mortos já não louvam a Javé, nem os que descem ao lugar do silêncio” (Sl 115,17)
“Os vivos estão sabendo que devem morrer, mas os mortos não sabem nada, nem terão recompensa, porque a lembrança deles cairá no esquecimento. Seu amor, ódio e ciúme se acabam, e eles nunca mais participarão de nada que se faz debaixo do Sol. Tudo o que você puder fazer, faça-o enquanto tem forças, porque no mundo dos mortos, para onde você vai, não existe ação, nem pensamento, nem ciência, nem sabedoria” (Ecl 9, 5-6.10)
Entretanto, essa idéia vai sendo discutida nos textos, com isso se modifica aos poucos até que em Jesus, ela é elucidada definitivamente, já que, em se referindo a Abraão, Isaac e Jacó, ele afirma que Deus não é Deus de mortos, mas de vivos (Mt 22,31-32). Quem está vivo tem consciência, pensamento, sabedoria e existe ação, não é mesmo?
Nesse último livro, Eclesiástico, nós encontramos essas duas interessantes passagens:
“O que é o homem, e para que serve? Qual é o seu bem e qual é o seu mal? A duração de sua vida é de cem anos no máximo. Como gota no mar e grão na areia, tais são os seus poucos anos frente a um dia da eternidade. É por isso que o Senhor tem paciência com os homens, e derrama sobre eles a sua misericórdia. Ele vê e reconhece que o fim deles é miserável, e por isso multiplica para eles o seu perdão. A misericórdia do homem é para o seu próximo, porém a misericórdia do Senhor é para todos os seres vivos. Ele repreende, corrige, ensina e dirige, como o pastor conduz o seu rebanho. Ele tem compaixão dos que aceitam a correção, e dos que se esforçam para lhe cumprir os mandamentos”. (Ecl 18,7-18).
“É melhor a morte do que viver com amargura, e o descanso eterno vale mais do que doença crônica” (Ecl 30,17)
Como conciliar a idéia do inferno eterno com a primeira passagem? Pela segunda, poderemos concluir que o autor é um apologista ao suicídio para as pessoas amarguradas ou as com doença crônica? Assim fica claro que não podemos pegar tudo ao pé da letra e muito menos aceitar como revelação divina, já que é flagrante que muita coisa se trata de opinião do autor bíblico, certo?
Vamos agora analisar algumas passagens bíblicas que demonstram que os mortos não estão dormindo. Vejamos:
Em 1Sm 28,3-21 é narrado o episódio em que Saul vai a Endor, e através da pitonisa, põe-se a conversar com o espírito Samuel, que lhe prediz o fim como resultado da guerra com os filisteus, fato confirmado no livro Eclesiástico, onde é afirmado que Samuel mesmo depois de morto profetizou (Eclo 46,13-20). Até onde sabemos, isso não poderia acontecer se o espírito Samuel estivesse mesmo dormindo e não fosse consciente, no sentido que querem dar ao vocábulo.
Não podemos deixar de citar o célebre momento da transfiguração de Jesus no monte Tabor, em que conversa com os espíritos Moisés e Elias, na presença de Pedro, Tiago e João (Mt 17,1-9), numa evidente prova de consciência e atividade após a morte.
Segundo alguns teólogos, quem se manifesta são os demônios e não os espíritos das pessoas que aqui viveram. Se assim for Jesus foi enganado pelo demo? Por outro lado, onde estaria, na própria Bíblia, a regra clara e incontestável em que se diz que os homens depois de mortos estão sempre dormindo e os demônios sempre acordados?. Será que Deus permite aos demônios ficarem acordados influenciando o homem terreno ao mal, enquanto os espíritos daqueles que sempre praticaram o bem são obrigados a ficarem dormindo? Não existe algo de estranho nisso?
Há uma passagem interessante onde Jesus narra a situação depois da morte de um pobre e de um rico. Embora seja conhecida, vamos transcrevê-la:
"Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino, e dava banquete todos os dias. E um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, que estava caído à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E ainda vinham os cachorros lamber-lhe as feridas. Aconteceu que o pobre morreu, e os anjos o levaram para junto de Abraão. Morreu também o rico, e foi enterrado. No inferno, em meio aos tormentos, o rico levantou os olhos, e viu de longe Abraão, com Lázaro a seu lado. Então o rico gritou: 'Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque este fogo me atormenta'. Mas Abraão respondeu: 'Lembre-se, filho: você recebeu seus bens durante a vida, enquanto Lázaro recebeu males. Agora, porém, ele encontra consolo aqui, e você é atormentado. Além disso, há um grande abismo entre nós: por mais que alguém desejasse, nunca poderia passar daqui para junto de vocês, nem os daí poderiam atravessar até nós'. O rico insistiu: 'Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa de meu pai, porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não acabem também eles vindo para este lugar de tormento'. Mas Abraão respondeu: 'Eles têm Moisés e os profetas: que os escutem!' O rico insistiu: 'Não, pai Abraão! Se um dos mortos for até eles, eles vão se converter'. Mas Abraão lhe disse: 'Se eles não escutam a Moisés e aos profetas, mesmo que um dos mortos ressuscite, eles não ficarão convencidos'." (Lucas 16,19-31).
Apesar de ser uma parábola, podemos perceber que o texto não diz que Abraão e Lázaro estavam inconscientes e dormindo, ao contrário, dá-se para concluir que estavam bem ativos, já que é narrado o diálogo que Abraão teve com o rico, que por sua vez, também não estava dormindo. Aos que tomam tudo ao pé da letra perguntaremos: Se o juízo final não aconteceu como explicar que Abraão esteja no céu? A passagem coloca que, imediatamente, após a morte tanto o rico como Lázaro tiveram seu destino, fatalmente delineado por um julgamento, mas qual julgamento se o dia do juízo final não havia chegado?
Em Jo 11,1-44, conta-se sobre a morte e ressurreição de Lázaro (não confundi-lo com o da passagem anterior), o amigo de Jesus, irmão de Marta e Maria. Supondo-se que Lázaro tenha verdadeiramente morrido, Jesus ao chamá-lo de volta não disse: “Lázaro, acorde e saia para fora”, assim a conclusão é que o amigo de Jesus estava consciente. Vale lembrar que se Lázaro estava realmente morto, então Jesus conversou com os mortos, não é mesmo?
É aceito por todos nós que Jesus morreu e após sua morte apareceu aos discípulos, fato que vem a comprovar que os mortos não ficam dormindo coisa nenhuma e muito menos permanecem na inconsciência, inclusive, sabemos que Jesus foi pregar o Evangelho “até aos mortos” (1Pe 4,6). Ora, isso só poderia acontecer se esses mortos para os quais Jesus pregou estavam conscientes. Por outro lado, é evidente que há possibilidade de conversão ao Evangelho após a morte senão Jesus teria pregado em vão.
Conclusão
Esperamos, caro leitor, que nosso estudo tenha possibilitado uma melhor compreensão de qual é a realidade após a morte. Obviamente, não estamos impondo nosso ponto de vista a ninguém, somente apresentamos as nossas conclusões tiradas do estudo da Bíblia. Gostaríamos de ressaltar, ainda, que para nós é importante não ficarmos presos às interpretações dogmáticas ou as equivocadas, que mais demonstram a precariedade de suas análises dos textos, sem a mais leve crítica, que sempre produzem interpretações completamente fora do contexto da narrativa.
Paulo da Silva Neto Sobrinho
Referências bibliográficas
A Bíblia Anotada. São Paulo: Mundo Cristão, 1994.
Bíblia Sagrada. 68ª ed. São Paulo: Ave Maria, 1989.
Bíblia Sagrada, Edição Barsa. Rio de Janeiro: Catholic Press, 1965.
Bíblia Sagrada, Edição Pastoral. 43ª imp. São Paulo: Paulus, 2001.
Bíblia Sagrada, 37a. ed. São Paulo: Paulinas, 1980.
Bíblia Sagrada, 5ª ed. Aparecida-SP: Santuário, 1984.
Bíblia Sagrada, 8ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1989.
Bíblia de Jerusalém, nova edição. São Paulo: Paulus, 2002.
Bíblia do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2002.
Bíblia Sagrada, Sociedade Bíblica do Brasil, Brasília, DF, 1969.
Escrituras Sagradas, Tradução do Novo Mundo das. Cesário Lange, SP: STVBT, 1986.
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[1] Gn 47,30; 2Sm 7,12; 1Rs 1,21; 2,10; 11,43; 14,20.31; 15,8.24; 16,6.28; 22,40.50; 2Rs 8,24; 10,35; 13,9.13; 14,16.29; 15,7.22.38; 16,20; 20,21; 21,18; 24,6; 2Cr 9,31; 12,16; 14,1; 16,13; 21,1; 26,23; 27,9; 28,27; 32,33; 33,20.
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