Os teólogos do Cristianismo Ateu, da Teologia Radical da Morte de Deus, são anjos rebelados e decaídos do Paraíso Medieval.
Nesta fase de inquietações e contradições que marca os flancos bovinos do Século XX com imenso sinal de interrogação em ferro e em brasa, a tese da Morte de Deus, oriunda da II Guerra Mundial e inspirada no episódio do louco de Nietzche, anuncia a liquidação final do espólio medieval no pensamento contemporâneo.
Nesta fase de inquietações e contradições que marca os flancos bovinos do Século XX com imenso sinal de interrogação em ferro e em brasa, a tese da Morte de Deus, oriunda da II Guerra Mundial e inspirada no episódio do louco de Nietzche, anuncia a liquidação final do espólio medieval no pensamento contemporâneo.
Os bens desse espólio se constituem dos imóveis patrimoniais de um Cristianismo deformado, com as suas catedrais gigantescas, a estrutura econômico-financeira do Vaticano, os artigos da velha simonia contra a qual Lutero se rebelou e os inesgotáveis lotes de quinquilharias sagradas, vestes e paramentos ornamentais, símbolos e dogmas das numerosas Igrejas Cristãs. Essa a razão por que, matando Deus, os novos teólogos pretendem colocar o Cristo provisoriamente em seu lugar. A imensa literatura religiosa medieval, que superou de muito os absurdos dos sofistas gregos, destina-se ao arquivo milenar da estupidez humana.
O Materialismo e o Ateísmo do Renascimento, acolitados pelo Ceticismo, o Positivismo e o Pragmatismo, formam o cortejo do féretro gigantesco e sombrio, manchado de cinza e sangue, da pavorosa arrogância em que se transformou a pregação de humildade, os exemplos de tolerância e simplicidade do Messias crucificado.
É o lixo do famoso Milênio, carreado para a Porta do Monturo do Templo de Jerusalém, para ser lançado nas geenas ardentes. Dispensa-se o inventário, porque não sobraram herdeiros.
Nenhuma civilização morreu de maneira mais inglória do que essa, em que Deus figurou como o carrasco impiedoso da Humanidade ingênua e ignorante.
Apesar da rudeza dessa visão trágica, assim pintada em cores fortes na tela de um pintor primitivista (bem ao gosto do século), ela não implica a negação da necessidade histórica da Idade Média.
Pelo contrário, o fundo histórico desse panorama, na perspectiva tumultuada das civilizações da mais remota antiguidade, todas fundadas na força, na violência e nos arbítrios das civilizações massivas que vêm da lendária Suméria até a Macedônia e a Pérsia, projetando-se num impacto em Esparta e Roma, e um clarão de beleza e consciência em Atenas (que também não escaparia aos eclipses da escravidão e da execução de Sócrates) justificam histórica e antropologicamente a tragédia humana desses séculos de primarismo e barbárie que sucederam ao estranho advento do Cristianismo. Nada se pode condenar nesse panorama monstruoso, em que as idéias cristãs, renovando tímidos lampejos de esperanças frustradas e revigorando-os na visão de esperanças futuras, penetravam na massa e a ela se misturavam como o fermento da parábola evangélica. As leis naturais da evolução criadora, segundo a expressão de Bergson e de acordo com a tese dialética de Hegel, levavam ao fogo de Prometeu (roubado ao Céu) o caldeirão implacável das fusões dantescas, na percepção intuitiva de Wilhelm Dilthey, os elementos conjugados das civilizações mortas. Os deuses mitológicos eram caldeados nas próprias chamas votivas de seus templos, fundindo-se com Iavé, o Deus Único dos hebreus, para modelagem futura do Deus Cristão, que nascera da palavra mágica do Messias: Pai.
Mas até que os homens pudessem compreender o sentido dessa breve palavra, desse átomo oral, os detritos ferventes do caldeirão medieval teriam de escorrer pelas muralhas do preconceito e da ignorância, queimando o solo do planeta e a frágil carne humana.
Não é de admirar que as atrocidades da II Guerra Mundial tenham feito o mesmo. Em meados do Século XX estávamos ainda bem próximos das fogueiras da Inquisição e dos instintos ferozes dos antigos sátrapas das civilizações massivas, monstruo sas expansões das tribos bárbaras, em que os ritos do sangue e do ódio ao semelhante purificavam a túnica dos sacerdotes e das vestais, manchadas pelos sacrifícios humanos e pela prostituição sagrada nos altares e nas escadarias dos templos. Os abutres da guerra devoravam Prometeu em cada vítima da loucura hitlerista e chafurdavam na prostituição sagrada dos mitos da violência, essa Górgora terrível e insaciável do Jardim das Hespérides nazista. A histeria e o sadismo, a brutalidade e o homossexualismo campeavam livres nas guarnições de heróis, como um Estige de lamas que escorresse do Fuherer para a Alemanha, asfixiando as mais belas conquistas da sua tradição cultural a invadir e contaminar as nações vencidas. Os campos de concentração e suas câmaras de gás destruíam a confiança no homem, revelavam a falência do Humanismo e a fé em Deus nas cinzas das incinerações brutais.
Na Itália dos poetas e cantores tripudiavam os asseclas do Duce, submisso ao Fuherer, e no Japão das cerejeiras e dos Kaikais o fanatismo dos kamikazes desafiava a insensibilidade de Truman, que não tardou a lançar suas bombas atômicas sobre Nagasaki e Hiroshima, no mais monstruoso genocídio da História.
Não nos é possível sequer conceber o Nada, o vazio absoluto, do qual Deus teria saído como o Ser Absoluto. Tirar o Absoluto do Nada é uma contradição que nosso entendimento repele. A existência de Deus, como anterior à Criação é inconcebível. E se algo existia antes, temos um poder criador anterior a Deus. A tese budista do Universo incriado, que sempre existiu, subordina o poder de Deus a essa existência misteriosa e inexplicável. Nos limites da nossa mente esses problemas não cabem, são mistérios que serviram para todos os sofismas, jogos de palavras e conclusões monstruosas do pensamento teológico. Mas quando aplicamos o bom-senso, com a devida modéstia de criaturas finitas e efêmeras, diante do Infinito e da Eternidade, podemos reduzir o ilimitado aos limites da realidade inteligível. Então o raciocínio dedutivo, de ordem científica, que parte do chão da existência evidente, para alcançar pouco a pouco as alturas acessíveis, nos coloca diante de uma realidade que podemos dominar. Deus como Existente, que existe na nossa realidade humana, pode ser tocado com os dedos e sentido, captado pelo nosso sensório comum. Não necessitamos da percepção extra-sensorial para captar sua existência.
O grande erro das religiões é apresentar Deus como enigma insolúvel e exigir que o amemos de todo o coração e todo o entendimento. Essa colocação contraditória levou-as a um absurdo ainda maior, o de transformar Deus num tirano sádico que nos criou para submeter-nos à tortura e à perdição. Por mais que se fale em amor, misericórdia e piedade, essas palavras nada valem diante das ameaças da escatologia religiosa.
Mas Deus como Existente é o Pai que Jesus nos apresenta em termos racionais, pronto a nos guiar e amparar, a nos dar pão e não cobras quando temos fome e a nos convidar incessantemente para o seu Reino de Harmonia e Beleza. Se podemos percebê-lo em nós mesmos, na nossa consciência e no nosso coração, se podemos vê-lo em seu poder criador numa folha de relva, numa flor, num grão de areia e numa estrela, se podemos conviver com ele e sentarmos com ele à mesa e partir o pão com os outros, então ele realmente existe em nossa realidade humana e o podemos amar, e de fato o amamos de todo o coração e de todo o entendimento. Deus como Existente é o nosso companheiro e o nosso confidente. Não dependemos de intermediários, de atravessadores do mercado da simonia para expor-lhe as nossas dificuldades e pedir a sua ajuda. A existência de Deus se prova então pela intimidade natural (não sobrenatural) que com ele estabelecemos em nossa própria existência.
Diante desse quadro horripilante, e particularmente dentro dele, nada mais se poderia esperar dos crentes e dos teólogos do que a pergunta amarga e geralmente irônica: Deus existe? Na Antiguidade os sátrapas eram considerados como investidos de prerroga tivas divinas. Tudo quanto faziam vinha de Deus e a crendice popular não se atrevia a discutir os direitos humanos ante o perigo sempre iminente da Ira de Deus. Mas após o Renascimento, a Época das Luzes, a crendice transformou-se em crença sofisticada pelas racionalizações abusivas. O homem moderno escorava a sua fé no conceito hebraico da Providência, sempre vigilante e pronta a socorrer a fragilidade humana. Esse homem não poderia suportar a catástrofe que se abatia sobre ele de maneira implacável, ante a mudez comprometedora do Céu. Sua razão aprimorada condenava o passado e jamais supusera possível a sua ressurreição brutal, sob as asas metálicas dos aviões de bombardeio e das bombas voadoras. O ateísmo do passado parecia-lhe agora uma simples atitude pedante. O seu ateísmo, o seu materialismo e o seu pragmatismo, pelo contrário, assentavam-se agora nas bases sólidas de um horror que o deixara só e frágil em face dos carrascos poderosos. Os velhos teólogos não podiam explicar a indiferença divina, o desprezo de Deus pelas suas criaturas que, segundo eles, haviam sido criadas por amor. Os novos teólogos só encontraram uma explicação possível: a Morte de Deus.
Entretanto, por mais esmagado que esteja, o homem não pode ficar sem uma luz de esperança. Os novos teólogos lhe ofereceram então a figura humana de Cristo. Um Deus histórico, existencial, que sofrera e morrera por ele aqui mesmo, na Terra dos Homens.
Não foi uma solução pensada, mas nascida das entranhas da desgraça total, das entranhas do horror. Homens que cresceram e se formaram nas crenças em Deus, alimentados pelas ilusões teológicas do Cristianismo, cobravam agora do Cristo as suas promessas frustradas. Ele, o Cristo, assumiria o lugar vazio de Deus em termos de emergência. Foi dessa situação premente que surgiu a aventura do Cristianismo Ateu. Por isso, quando lemos os livros brilhantes dos novos teólogos, transbordantes de uma inteligência vibrátil, mas impotente, que não consegue nem mesmo esclarecer o que é a Morte de Deus, perdendo-se em rodeios e sofismas que nunca atingem uma definição, compreendemos o desespero total a que chegou a inteligência humana ante os enigmas existenciais deste fim dos tempos. Na proporção em que a rotina da vida se restabelece no mundo arrasado, recompondo-se aos impulsos naturais da vitalidade humana, os tempos negros esmaecem na distância, introjetando-se na memória profunda da espécie como arcanos do inconsciente. As forças da vida reagem contra a destruição e a morte, a ponto de fazerem brotar redivivas – indiferentes às ameaças maiores que pesam no horizonte – as flores de antigas e esmagadas esperanças. Queremos todos confiar, queremos todos esperar.
Mas isso não acontece apenas pelo influxo das forças vitais. Acontece sobretudo pela certeza íntima, que todos trazemos em nós, de que cometemos um erro imperdoável ao alimentar nas gerações sucessivas um conceito falso de Deus. Muitas vezes essa certeza aparece como simples suspeita, desprovida de provas que lhe dêem validade ôntica. Mesmo assim ela nos sustenta no presente e nos faz esperar. Os reflexos dessa situação ocidental no Oriente não-cristão provocaram o mesmo abalo e a mesma desconfiança que sentimos. Os mestres indianos, os gurus e bonzos que viviam isolados em seu orgulhoso ascetismo, ciosos de seus segredos milenares, fizeram-se caixeiros viajantes perfumados e sorridentes, assessorados por técnicos em relações públicas, para venderem aos ocidentais os mistérios sagrados. Essa atitude, embora não seja geral, revela a suspeita insidiosa no inconsciente guru quanto à validade tradicional de suas técnicas religiosas. O pesadelo da guerra e o desespero posterior contribuíram de maneira decisiva para que o mundo se transformasse na Aldeia Global de Mac Luhan. Parece que pelo menos acreditamos todos, no Ocidente e no Oriente, que o mundo de comunicação de massa nos oferece a opção coletiva de esperar sem preocupações, pois todos sabemos que se apertarem os botões da guerra nuclear morreremos na solidariedade absoluta. A destruição não será mais tão dolorosa e lenta. Seremos aniquilados de um só golpe, na morte tecnológica.
Deus ressurge, se não no seu amor, ao menos na sua Justiça.
Já será um consolo para os que sempre sofreram e morreram enquanto outros vivem felizes no uso e abuso dos bens terrenos. A idéia de um Pai todo poderoso, e no entanto insensível à miséria e ao sofrimento da maioria dos filhos, sempre perturbou os que pensam e levou muitas criaturas à revolta e à descrença. De duas, uma: ou aceitavam a injustiça ou não admitiriam a existência de Deus. Bastaria isso para nos mostrar que o conceito de Deus, formulado pelas religiões e sustentado a ferro e fogo através dos milênios, não pode estar certo. Precisamos examinar esse grave problema enquanto não apertam os botões do Juízo Final.
J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus
Nenhum comentário:
Postar um comentário