Com a alma repleta de angústias e desolações, anseios frustrados e expectativas ansiosas, caminha o homem há milênios pela metrópole da fantasia, atravessando ruas decadentes e praças desertas. Seus passos são céleres, embora tenha os ombros curvados ao peso de enormes ambições.
Desloca-se sem descanso de um minuto sequer, no sonho de ser feliz sem amor e, na marcha infatigável, um dia cruza o beco escuro do túmulo, que transpõe para se surpreender perdido na misteriosa cidade do Além, onde continua correndo atrás de algo que não encontrará fora de si mesmo, até ser trazido de volta à esfera material, por via da reencarnação, a fim de dar começo a uma nova jornada perquiridora ...
Eis o drama da existência humana, no palco dos séculos que rolam na esteira movediça do tempo, como gotas d'água escorrendo por uma folha verde de esperança, presa à árvore da eternidade.
Bertrand Russell, filósofo respeitado como ardoroso humanista mas também ateu consumado, em sua obra A Conquista da Felicidade (Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1996), depois de desenhar o retrato do homem ditoso, conclui o capítulo final com as seguintes palavras:
"Tal homem se sente cidadão do universo, desfrutando do espetáculo que o mundo oferece e das alegrias que este proporciona, indiferente à idéia da morte, pois que não se sente, realmente, separado daqueles que virão dele. É nessa união profunda e instintiva com o fluxo da vida que se encontra a maior alegria. "
Quanta ingenuidade!
É justamente essa fuga à idéia da morte, determinante do desejo único de usufruir dos prazeres deste mundo, que torna o homem desventurado.
Enquanto ele não descobrir sua sobrevivência ao fim do corpo fisico, colocando conseqüentemente a maior satisfação nos valores espirituais, permanecerá peregrinando por províncias ilusórias pavimentadas de dor, sempre apressado e nunca chegando, em definitivo, a lugar nenhum.
O problema da felicidade, que aflige o ser humano desde as eras mais remotas, tem inumeráveis equações formuladas por pensadores materialistas modernos, de Russell à Sartre, mas todas elas são impotentes para enxugar uma só lágrima de quem acompanha o enterro de um ente querido ...
Apenas a crença em Deus, na imortalidade da alma e na supremacia do Bem sobre o Mal, pilastras sustentadoras da teoria socrática, platônica, cristã e Kardecista, livrará o homem do infortúnio. E enquanto ele não absorver esta verdade profundamente, em todas as fibras da sua inteligência e do seu coração, através de uma fé raciocinada, estará sem preparo para compreender, sentir e pôr em prática a autêntica moralidade espiritista.
Por enquanto temos de nos contentar com o falso entendimento dos princípios éticos da nossa doutrina, porém isso não significa que não devemos contribuir para uma nova compreensão da moral espírita. Devemos, sim, até porque, se não formos úteis aos místicos e intelectualistas, pelo menos prestigiaremos os legítimos irmãos de crença.
Quem são eles?
Podemos identificá-los, conferindo-lhes o título de verdadeiros espíritas, utilizando a imagem de que se valeu Francis Bacon, em sua magistral obra Novum Organum, onde, no aforismo XCV sobre a interpretação da natureza e o reino do homem, são mencionadas as formigas, as aranhas e as abelhas para representar as três categorias de seguidores de qualquer filosofia.
Em nosso movimento as formigas são os companheiros entregues ao misticismo, que trabalham muito com fervor e disciplina, acumulando provisões de fé das quais se nutrem alheios às conquistas da inteligência.
As aranhas são os confrades adeptos do intelectualismo, que pensam muito e quase nada fazem, armazenando vastos conhecimentos nos quais se comprazem indiferentes à melhoria do coração.
As abelhas são os que trabalham e pensam equilibrada e proveitosamente (para si e para os outros).
Os místicos - não sejamos radicais - têm o seu mérito, porém cometem o erro de se satisfazer com as migalhas bíblicas que carregam para debaixo da terra de seus devaneios, não se preocupando com mais nada e com mais ninguém.
Os intelectualistas também possuem o seu mérito, porque estudam, mas subindo ao teto do edifício doutrinário cometem o erro de engendrar uma teia de idéias que só interessa a eles próprios e se rompe à menor pressão do princípio da caridade.
Tanto uns como os outros, semelhantemente às formigas e aranhas, desprezam o bem em geral, produzindo apenas para eles mesmos. Os verdadeiros espíritas, como as abelhas, metabolizando a cultura da inteligência e a bondade do coração fabricam mel do amor esclarecido que partilham com os semelhantes. (Já escrevemos isso na revista Reformador)
Estes últimos espíritas devemos valorizar, e o único modo de fazê-lo é a dissertação sobre a moral espírita com lucidez Kardequiana.
Foi o que tentamos nesta brochura, cujo reduzido número de páginas é proposital, tendo em vista a conveniência de manter tanto quanto possível sua feição popular, inclusive tornando-a leve para ser vendida a preço barato, acessível aos pobres cada vez mais deslembrados dentro do movimento espírita brasileiro, no qual começa a aparecer o elitismo e já se cobra ingresso para o discurso doutrinário de oradores visitantes.
Nazareno Tourinho - Críticas e Reflexões em torno da Moral Espírita
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