quarta-feira, 10 de novembro de 2010

COMPORTAMENTO DO HOMEM

Não sou eu das pessoas que maldizem a sua passagem pela Terra. Antes a bendigo.

Nas minhas derradeiras estadas aí, sofri e gozei com o sofrimento. O meu espírito havia, enfim, compreendido que só no sofrimento existia o bem; e o meu divino esposo1 fez-me à mercê de me dar na dor, não só a resignação para ela, como ânsia para mais sofrer; e tanta tive, que por muito que penasse, muito maior era o desejo por penar.

Não conhecem os mortais, ainda não bem limpos da mácula da carne, o que de gozo existe em nos desprendermos e libertarmos de tudo que para eles é gozo; nem quanto de mau escurece a nossa alma naquilo de que fazem luz para iluminar a deles.

Há, na crença em Deus e no seu amor, doçuras que nenhum outro sentimento nos dá, e que nenhuma palavra humana traduz.

A palavra serve só para representar as coisas desse mundo; e quem ama e serve só a Deus, já desse mundo não é, já os seus afetos e o seu sentir saíram da atmosfera pesada em que vive e sente quem só na carne pensa e vive.

Felizes, a quem ainda aí é dado contemplar os esplendores que Ele reserva aos seus filhos, e que põem a vida em serviço do bem e de seus irmãos, estão já em véspera da libertação do cativeiro, que a Terra lhes é, pior que as galés de Ceuta2 ou as fronteiras de Marrocos; e assim se isolam na frescura da sua crença, no bálsamo da sua fé, pedindo a Deus por aqueles a quem ainda não chegou a hora abençoada do resgate.

Para todos ela pode chegar, porque não é mercê para raros, mas patrimônio de todos os filhos do Senhor; mas como na Terra há frutos e há quem morra de fome, há água e há quem morra de sede, assim há perdão e há quem morra condenado, há paz e há quem morra em guerra, e fé e quem morra impenitente.

Por que será? Naturalmente porque quem precisa não sabe buscar; quem não tem não sabe pedir, e a quem dão não sabe aceitar. Pôs Deus de tudo no mundo, e a todos deu direito de colher.

Colhe cada um o que lhe parece de melhor, ou o que mais bem sabe ao seu paladar.

Quem vai à colheita não cuida da escolha; e por engano traiçoeiro colhe, a maior parte das vezes, o fruto de melhor cor e de mais enganosa aparência, que lhe tentou melhor a cobiça ou lhe tentou mais a ambição, soendo3 que esse fruto é, por vezes, o de menos valiosa qualidade e de mais ruim alimento e empeçonhada digestão.

Quando quer fazer escolha acertada, à custa do seu trabalho aprendido, já o tempo lhe míngua para o cuidado e a força lhe falece para a empresa.

Bem fora que tivesse posto em seu sentido o zelo no trabalho e a atenção na preferência, a tempo de evitar pesares e afastar enganos.

Quem há, todavia, que não ponha em desejo mal cuidadas esperanças e bem infundadas ilusões?

A felicidade está em conhecer a tempo o véu que o entendimento lhe ofusca, e arrancá-lo com mão firme; e ter não menos firme propósito de outro não deixar tear4 à impiedade e à dúvida, para lhe tapar de novo a vista, quando é tempo de ver, e por ela aprender, que para isso lhe foi dada.

Muito apraz ao homem cego, supor que os outros também não vêem; e ao míope negar aquilo aonde a sua vista não chega; mas melhor farão os outros que bem vêem, em dissuadir do erro aqueles a quem a desgraça não deixa ver, do que em lhes lisonjear o engano, encurtando a própria vista para lhes fazer companhia e aprovação.

Assim quer ver na Terra, o homem terreno, só o que à Terra de que é, bem sabe; e repele tudo que a sua alma requeira para seu deleite e caminhar.

Alimenta-se a alma com comeres pouco sólidos, e às vezes de trabalhoso alcance; e a carne, que havia obrigação de lhe fornecer com que alimentar-se, como serventuário único à mercê de que essa alma está, mais prazer sente em lhos negar, por custosos, do que em buscar-lhos, por sacrifício.

Cuida só, com porfiado interesse, naquilo que a ela é mister; e para que não seja acusada de deixar à míngua a pobre que Deus confiou à sua guarda e zelo, prefere ocultá-la na negativa, como se negar a fizesse desaparecer.

E, altiva de si própria, a carne gasta só na sua utilidade o que, para si e para a sua cativa, Deus lhe facultou.

Aqueles, porém, a quem a vaidade e o prazer não cegam, e que mais da sua alma cuidam que da carne, porque nela viverão, quando esta, saciada e apodrecida, os expulsar de si, esses já aí vislumbrarão o reino prometido pelo meu Jesus divino; e as suas almas, a que os corpos serviram de cárcere, entrarão na mansão liberta, cheia de luz e de harmonia, que é a essa de Deus.

Aí, na Terra, levarão vida leve, alegres nos pesares, aliviados nas algemas, felizes na pena, porque assim crêem alcançar o gozo eterno. Saberão procurar ter a sua consciência limpa, como quem espera ter que mostrá-la a quem, pela sua alvura, apreciará a obra de quem a tem; enquanto que os outros não se lhes dará que limpa ou suja ela se conserve, porque supõem que, para a ocultar aí a indiscretas vistas, o seu artifício lhes basta até ao fim da vida, e, quando a morte chegar, esta se encarregará de a tirar da presença de todos, no seu manto de horror e de podridão envolvida.

Tendo, pois, cada um, o pensar diverso, diverso será o seu empenho, e diversa será a sua obra nesse mundo.

Quem nessa vida só ponha toda a sua esperança, nela só procurará dessa esperança toda a realização.

Quem a ponha nessa e nesta vida, e mais nesta do que nessa, nesta fiúza5 porá toda a sua aspiração e no bom resultado da sua obra buscará mercê.

Quem for só da terra, ou quem dela só suponha ser, nela buscará os frutos que ao seu paladar agradam; quem acreditar que é da terra na carne, da eternidade na alma, à terra tirará o que à carne é mister, e no sentimento procurará o que para a alma necessita. E, como a alma, de mais longeva existência e de mais requintada exigência é, de mais sadio manjar precisa e mais cuidado porá na escolha, deixando o que de mais grosseiro exista para a parte de mais grosseira exigência da sua organização.

Quem não saiba, ou quem não queira distinguir a dualidade de que se compõe seu ser, dará à sua vida errada direção, e à sua exigência, alimentação errada.

Na vida deve cada um demandar o que à sua situação for mister. Como para o frio do corpo busca o abafo, para o frio da alma deve buscar a fé.

Nos desalentos deve buscar a esperança; na felicidade, a continência6; na dúvida a certeza, em Deus a origem de toda a sua vida, e no engrandecimento da sua alma, de toda a sua vida o fim.

Mal virá a quem isto não fizer; porque esses - ai deles! - tarde verão a luz, tarde comungarão à mesa do meu divino Mestre.

Nele deverão procurar exemplo. Quem não souber amar como ele, não será amado; quem como ele não souber perdoar, não será perdoado; quem como ele não apartar para a carne o que da carne é, e para a alma o que é da alma, na mesma dor carne e alma se lhe confundirão, da mesma lepra ambas serão corroídas, até que pela mesma dor volvam à verdade.

Suplico a Deus que ponha ante cada filho seu a luz que o deixe distinguir o bom e o mau caminho.

Àquele que escolher o bom, eu darei emboras7; ao que se meter pelo mau, Deus tenha dele piedade, Dele e de nós.

(Espírito de Thereza d’Ávila8 - Do País da Luz 2).

NOTAS DO COMPILADOR:
1 - provavelmente, o Espírito refere-se a Jesus.
2 - cidade espanhola da costa da África, diante de Gibraltar.
3 - tendo por hábito.
4 - aparelho de tecer.
5 - confiança; esperança.
6 - continência; moderação;
7 - parabéns.
8 - Teresa de Ávila (religiosa espanhola) era possuidora de elevada cultura. Trabalhadora emérita na difusão do cristianismo (abriu 17 mosteiros de mulheres e 15 de homens). Foi processada pela Inquisição e mais tarde transformada em santa, conhecida como Santa Teresa de Jesus.

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