quinta-feira, 12 de abril de 2012

SACRAMENTOS ESPÍRITAS?


O Espiritismo, suscitado numa época por excelência caracterizada pela liberdade de pensamento, pelo espírito de crítica e de raciocínio; que, como ciência repousa sobre fatos de observação, milhares de vezes comprovados, como filosofia apoia-se nas mais sólidas induções e deduções que daí decorrem, submetendo todos os ensinos espirituais ao cadinho da lógica inflexível, e como moral, finalmente, vem por termo ao reinado da letra que mata, substituindo-o pelo do espírito que vivifica: o Espiritismo virá a ser um dia uma religião com tudo o que as deforma e esteriliza, isto é, com dogmas, sacerdotes, liturgia, sacramentos, numa palavra, com todo o complicado aparato do culto exterior que, em todos os tempos, deveram as religiões o seu efêmero prestígio, mas também por fim a sua ruína inevitável e fatal?

Seria necessário desconhecer a significação do tempo que vivemos e o papel que o Espiritismo é chamado a desempenhar, como propulsor do progresso humano, incompatível com aquelas embaraçosas engrenagens, para concluir pela afirmativa.

Com efeito, a revelação espírita surge em uma época em que a humanidade, suficientemente esclarecida, acha-se preparada para compreender a inutilidade das fórmulas e do formalismo, e tende a buscar a satisfação de suas latentes aspirações de felicidade e de progresso, não nas práticas, mais ou menos materiais, do culto exterior, mas no desenvolvimento sistemático das forças ocultas da alma, que lhe permitirão uma posse, um conhecimento e, por conseguinte, um gozo espiritual tanto mais intenso quanto maior for o apuro e o desenvolvimento das suas faculdades.

Até aqui, a educação religiosa do homem se tem feito mediante a imposição de um certo número de preceitos, cuja observância – diziam-lhe – asseguraria a salvação. Hoje, pelo Espiritismo, sabemos que o destino é regido por leis sábias, inflexíveis, amorosas e equitativas que “dão a cada um segundo suas obras”, isto é, que exigem de toda criatura, para que efetivamente progrida se adiante e engrandeça espiritualmente, o esforço constante e pessoal, no exercício das virtudes cristãs, por um longo estudo e conhecimento de si mesma, destruindo todas as tendências trazidas do passado, e estimulando as secretas aspirações de Bem e da Verdade, que em todas Deus depositou. Não há assim progresso possível, sem a intervenção da própria atividade consciente, muito embora não cesse a divina Bondade de outorgar-lhe seus favores, suprindo em misericórdia o que em merecimento falta. Mas a inciativa é necessária.

Daí resulta que, estabelecendo-se cada vez mais íntimas e permanentes as relações entre as criaturas e o Criador, por intermédio dos seus mensageiros, e cumprindo a cada uma fazer do seu próprio coração o tabernáculo em que o adore em espírito e verdade, praticando as suas leis, desaparece inteiramente toda a razão de ser dos formalismos, cerimonias e exterioridades cultuais, que as religiões até agora inculcaram necessários à salvação dos homens.

O Espiritismo, pois, que vem preparar, inaugurar e estabelecer definitivamente na terra esse reinado do espírito, por Jesus anunciado e prometido à Samaritana, jamais se poderá constituir uma religião dogmática, enfronhada na modesta roupagem dos complicados e estéreis cerimoniais que caracterizam em geral todas as religiões.

Assim não o parecem infelizmente entender alguns confrades que, ora aqui, ora nos Estados - como esses do interior de S. Paulo- tem ido pouco a pouco introduzindo nas práticas espiritas umas tantas cerimônias, de que porventura se lhes afigura impossível prescindir.

Está neste caso o batismo, de que aqui particularmente nos ocuparemos, e que em maior ou menor escala vai sendo praticado em centros e grupos, a cujos diretores fazemos a justiça de atribuir a boa fé ingênua de com isso acreditarem não infringir as normas genuinamente espíritas.

Ora, é porque somos dos que consideram essas práticas uma infração positiva de tais normas, e num intuito de elucidação do assunto, na medida de nossa limitada capacidade, que são traçadas estas linhas.

Antes de tudo convém definir a significação e os efeitos daquele sacramento e para isso não é necessário mais que recorrermos à fonte originária e às tradições religiosas de que procede, e em que ainda permanece.

O batismo da água foi instituído primitivamente, mas transitoriamente, por João, o precursor, por isso denominado o Batista, que, porém, anunciava abertamente que, após ele vinha o que batizaria no espírito, isto é, o Cristo, que daria aos homens as leis espirituais pelas quais se deveriam reger de então em diante, regenerando-se em seus preceitos, que não nas abluções exteriores, de mero simbolismo. Esse símbolo não era, contudo aplicados senão a homens adultos, e depois de uma pública penitência ou confissão de suas faltas, submetendo-se eles espontaneamente, livre e voluntariamente a essa prática.

Introduzido mais tarde nos hábitos da igreja cristã, então nascente, veio a adquirir o cunho de um dogma perfeitamente característico e definido, tal como até hoje se mantém, atribuindo-se-lhe o maior alcance e a mais alta significação.

São estes os seus efeitos: extingue-se a mácula do pecado original e torna cristão; confere a graça santificante, como dá direito aos frutos da redenção e, por conseguinte, ao céu torna filho da igreja, submetido às suas leis e apto a receber os outros sacramentos, que sem ele são nulos. Imprime à alma uma característica inapagável e não pode por isso ser jamais reiterado. É, finalmente, indispensável à salvação.

Assim, o estatuiu a teologia católica, a que nos reportamos fielmente. E tamanha era a importância que lhe atribuíram que, nos primeiros tempos da igreja, organizada como tal, os adultos não eram admitidos ao batismo senão depois de terem percorrido os três sucessivos graus do catecumenato: primeiramente como ouvintes, recebiam a necessária instrução; em seguida, como competentes, assistiam ao começo da missa e praticavam as abstinências de preceito; como eleitos, por fim, recebiam solenemente o batismo, ministrado quer na véspera da Páscoa, quer do Pentecostes.

Eis aí, pois, definido em sua significação e em seus efeitos esse sacramento, que alguns menos refletidos têm procurado introduzir nas práticas espiritas. E aqui cabe perguntar-Ihes se, adaptando-o, conservam -lhe os mesmos atributos e vantagens acima enumerados, desde a extinção do pecado original até a outorga formal da salvação.

Optarão sem duvida pela negativa e nem é preciso para isso aguardar-lhes o pronunciamento. Mas então a que título o adotam? Que significação lhe atribuem? Será por mero espírito servil de imitação que o copiam do ritual católico?

Há evidentemente- seja-nos licito afirmar de nossa parte- no fundo do pensamento que tem inspirado a uns tantos espíritas a introdução dessa cerimonia em seus processos, ou uma forte e inveterada reminiscência dos hábitos de passadas vidas. Ou, pelo menos, uma influência de sua atual educação religiosa.

Alegarão eles que o que praticam não é o batismo d'água, tal como o faz a igreja; alguns mesmo chegam com efeito, a dissimular o ato, substituindo-lhe o nome pelo de “apresentação espiritual” supondo ter assim dissipado toda confusão e porventura inventado alguma coisa nova. E esse será talvez o evasivo pretexto, de que muitos ainda se socorrerão, para não renunciar a tal prática, no seu conceito, indispensável à nova e estranha liturgia . Julgar-se-ão assim justificados, podendo alegar que não praticam o batismo: limitam-se à “apresentação” aos guias espirituais do recém-nato. 

Mas apresentação para que? Para esses guias invocados tomem sob sua proteção o espírito que mais uma vez volta ao planeta? Será então para isso indispensável uma tal formalidade, ou mesmo sem ela o guia espiritual não cessa de velar pelo ser confiado aos seus cuidados?

Se é indispensável, a doutrina espírita não está na verdade, quando afirma que toda criatura, todo espírito, desde o começo de sua evolução e durante a encarnação como na erraticidade, tem sempre a encaminhar- Ihe os passos e sugerir-lhe as boas resoluções um anjo tutelar, que o não abandona senão quando ele adiantou-se, evoluiu ao ponto de poder, por sua vez, constituir-se o guia de outros mais atrasados, como outrora o foi.

E se a apresentação não é indispensável - e não o é, porque seria a negação da previdência de Deus, desse modo colocada à mercê da claudicante iniciativa humana- nada justifica a sua supérflua inclusão nos hábitos espiritas. Deve, portanto, ser banida.

Ao demais, quando essa prática, com o nome de batismo ou de apresentação – importa pouco – não tivesse contra si a inoportunidade, isto é, quando não fosse levada a efeito ao momento em que o espírito encarnado menos consciência tem de si, por isso que se acha na plenitude da perturbação, mal entreabertos os olhos à indecisa luz do exterior e, por conseguinte menos pode conhecer os efeitos de um ato em que não toma parte, não constituiria menos esse enxerto um erro grave e um funesto precedente.

É um erro grave, porque importa antes de tudo em uma violação da liberdade de consciência individual. Por menos, com efeito, que se queira atribuir a esse batismo original o valor e o cunho da imposição da fé espírita, não é menos certo que o batizando ficará inscrito nos registros (?) da nova comunidade, com incontestável gáudio para as secretas intensões dos seus progenitores. Dirão estes que, sendo o Espiritismo a melhor das Doutrinas só pode haver benefício em se anteciparem eles à escolha de seu filho, incluindo de antemão nas fileiras a que há de pertencer mais tarde.

Foi assim que também raciocinaram nossos pais, quando nos fizeram conduzir à pia batismal, e foi igualmente assim que entenderam e praticaram todas as anteriores gerações, que- está-se vendo --possuíam do respeito ao livre arbítrio uma noção que não pode ser positivamente a mesma que possuem, ou pelo menos devem possuir, os espíritas. E com tudo isso não se puderam evitar as apostasias c abjurações.

Por melhor, pois, que considerem, e com justa razão- não há negar- a doutrina espirita em relação a todas as demais, nenhum pai tem contudo o direito de ligar de antemão seu filho, por uma fórmula ou uma cerimônia qualquer, a sua própria crença. O que lhe cumpre é educa-lo nos mais puros preceitos da moral cristã, mais por exemplos que por palavras, e esperar que, crescendo à sua sombra tutelar, venha ele mais tarde a adotar livremente as mesmas convicções religiosas. Se o contrario se der, se refratário aos ensinos e exemplos paternos, o filho, obedecendo a uma tendência natural de seu espírito, preferir qualquer outra das religiões ainda existentes sobre a terra , ao menos restará aos pais o consolo, não somente de ter cumprido o seu dever de exemplificação, mas também de haver fielmente respeitado a liberdade de consciência do que por Deus lhes fora confiado, abstendo-se de viola-la em qualquer tempo.

Reconhecemos quão difícil é atrair à própria crença pela integridade dos exemplos, que de alguma sorte impô-la por uma cerimônia momentânea; mas é muito útil e eficaz.

Quando ao precedente funesto a que aludimos, consiste ele no próprio fato da adoção de uma solenidade formalística, incompatível – repetimos – com o cunho eminente e exclusivamente espiritual da nossa Doutrina.

Há, com efeito, sempre um perigo na iniciativa de atos dessa ordem. E se é verdade que o Espiritismo, como dizíamos em começo, se apresenta e – temos fé – se conservará para o futuro com aquele característico de pura espiritualidade, graças sobretudo à universalidade da fonte em que se regenera e terá perpetuamente a segurança de sua evolutiva renovação - o mundo espiritual – não é menos certo que a adoção de exteriores formalidades pelos seus crentes poderá pelo menos criar embaraços às gerações futuras.

Convém nunca perder de vista as lições que a história da igreja nos oferece. Ao começo os cristãos se reuniam, para elevar ao céu as suas orações e estudar em comum o Testamento deixado pelo Divino Mestre, até um certo tempo conservado apenas na tradição oral, e mais tarde reduzido a texto escrito. Essa comunhão fraterna era ilustrada unicamente pela palavra dos profetas, ou médiuns, que, sob a inspiração e direção dos espíritos prepostos, dirimiam as dúvidas e elucidavam os ensinos.

Depois foram adotados alguns cânticos que, a pretexto de predispor as almas para o recolhimento e a unção religiosa, não foram mais que o pretexto fatal para outros acessórios, e mais outros, até chegar-se ao estado atual da igreja, que outrora, e por muito tempo infelizmente, foi do Cristo, mas que degenerou por fim nessa mundaneria em que o fausto, as pompas, as riquezas, tudo em suma o que pode entreter e lisonjear os sentidos, vieram a substituir esse indispensável trabalho de aperfeiçoamento da alma, mediante o cultivo de suas faculdades. Que contraste, realmente, entre aquelas assembleias recolhidas, afetuosas e fraternas dos primeiros cristãos e as solenidades pagãs e ruidosas da moderna igreja, entre a simplicidade espiritual e pura de suas crenças e o amontoado de dogmas, regras e pretensões teológicas atuais.

Cumpre pois, ter sempre em vista essas lições e banir sistematicamente tudo o que possa importar na organização de um ritual. Lembremo-nos de que muito pode o respeito ao passado e às tradições, e de que, instituindo certas práticas, colocaremos os nossos sucessores na desagradável perplexidade de, ao romper com os precedentes, escandalizando a muitos, ou conservar religiosamente o legado transmitido, em respeito à ‘sabedoria’ dos seus maiores.

E não será temerário nem gratuito vaticinar a possibilidade de se formarem correntes de opiniões em um e outro sentido, com evidente risco de perturbações e anarquias, que desde agora a prudência e a noção que devemos ter das nossas responsabilidades nos aconselham evitar.

Façamo-nos espíritas de fato e, como tais, homens novos, inteiramente emancipados de formalísticas rotinas, fiéis ao Cristo e aos seus mandatos, unicamente preocupados de por em prática os seus ensinos, hoje em toda a sua pureza restabelecidos em espírito e verdade.



Pedro Richard

Reformador (FEB), ano XXIII, número 23 em 03 de dezembro de 1905.

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