domingo, 15 de fevereiro de 2009

UM ESTRANHO CASO DE OBSESSÃO

De um jovem que se assinou J.S.P., em carta que nos escreveu, recebemos a seguinte interrogação:
“Será condenável um homem se tornar noivo de uma jovem, marcar a data do casamento e depois verificar que é a outra que ama, e, por isso, desejar romper o compromisso com a primeira? Este é o meu problema. Que devo fazer? Sinto que ambas gostam de mim, embora de minha parte já existe uma definição.”
Isso faz-me lembrar o episódio ocorrido com Jesus, citado pelo evangelista Lucas, no capítulo 12, vv. 13 e 14:
“Então , no meio da turba, um homem lhe disse: “Mestre, dize ao meu irmão que divida comigo a herança que nos tocou.” Ao que Jesus respondeu: “Ó homem! Quem me designou para vos julgar, ou para fazer as vossas partilhas?”

Não acreditamos que esse gentil correspondente esteja dizendo a verdade. Deve tratar-se apenas de uma curiosidade, uma investigação que ele faz, a fim de obter resposta, à luz do critério doutrinário, para casos a que, infelizmente, tantas vezes assistimos em nossa vida de relação. Não nos sentimos, aliás, no direito de opinar sobre ocorrência tão melindrosa, na hipótese de se tratar de uma realidade que o amigo J.S.P. viva no momento.
Não obstante, o bom senso indica que o fato de jogar com os sentimentos do nosso próximo é grave, e pode resultar em conseqüências muito desagradáveis, mesmo dramáticas. Muitas vezes, a leviandade praticada por alguém, em casos de amor, pode refletir-se em além-túmulo e arrastar a uma obsessão aquele que feriu um coração com a traição ou o desprezo. A lei de caridade manda-nos respeitar o coração amigo que se nos devota, e procurar não iludi-lo com falsas promessas ou atitudes levianas.
Uma solicitação de casamento deve ser refletida, amadurecida, antes de realizada, observando o pretendente se, com efeito, o seu sentimento de amor é sincero, é fiel para enfrentar um compromisso de tal responsabilidade. Porque tal compromisso não é apenas social, mas também moral, e o homem de bem deve honrá-lo, consultando a si próprio antes de tomar a resolução.
Este, vale dizer, é um problema exclusivamente de consciência, o qual, por isso mesmo, não foge às necessárias buscas de inspiração na prece sincera e vibrada.
Uma ingratidão, uma traição de qualquer natureza, assim como a hipocrisia diante de um coração que ama, é erro que poderá reverter sobre quem o pratica, senão de momento, mais tarde, e, mesmo, em futuro remoto. Responderemos, no entanto, narrando um fato típico de traição de amor, por nós assistido há cerca de quarenta anos, fato real e não fantasia de romance, que se passou em certa pequena cidade do Estado do Rio de Janeiro, a qual era por nós visitada periodicamente. E o nosso correspondente, se, realmente, estiver envolvido pela própria leviandade, compreenderá que necessita muita cautela do modo de agir, recorrendo ao Evangelho, a fim de orientar-se.

O jovem Sr. A.G. tornara-se noivo de uma jovem de excelentes qualidades morais, muito delicada de sentimentos e leal aos afetos íntimos, mas de condições sociais muito modestas. Era uma boa filha para sua mãe, a qual, por sua vez, era viúva e adorava a filha única entre ternura infinita. Chamava-se Elisa a jovem noiva, e, sua mãe, Madalena. O noivado corria normalmente, e o casamento fora marcado para seis meses depois. Elisa entregava-se ao seu amor com todas as forças da alma, o coração repleto de esperanças e confiança no futuro. O noivo, por sua vez, mostrava-se dedicado e atencioso. Não passava um único dia sem visitar a noiva, e o idílio fazia crer a nossa Madalena que a filha seria felicíssima no casamento.
Um dia, no entanto, o Sr. A.G., que era comerciante e lutava a fim de prosperar, necessitou viajar a uma cidade próxima - a cidade de A.R. -, lá passando três dias. Em um baile, a que fora convidado por um colega de comércio, conheceu uma jovem por nome Terezinha. Dançou prazerosamente com ela, reconheceu-a educada, alegre, amável, elegante, muito sociável, e enamorou-se. Voltando a sua cidade natal, meditou em que Elisa era bem inferior a Terezinha, pois não freqüentava a sociedade, vestia-se modestamente, e nem possuía aquela irradiante personalidade da outra. Elisa notou-o silencioso e triste, falando o mínimo, demorando-se menos em suas visitas, mas de nada desconfiou, porque seu coração era puro e não podia acalentar suspeitas contra aquele que lhe merecia toda a confiança. Na semana seguinte, A.G. voltou à cidade de A.R., e Terezinha pareceu-lhe mais sedutora do que no primeiro dia. Prosseguiu o namoro, com a moça a corresponder-lhe ternamente, com imensa alegria. Finalmente, passoua viajar para a velha cidade de A.R. todos os sábados., pretextando negócios, e lá ficava também aos domingos, deixando a casa comercial ao cuidado do sócio. Mas, não confessava a Terezinha que era comprometido em sua cidade natal nem rompia o noivado com Elisa. Faltava-lhe coragem para esclarecer a ambas a própria situação.
Chegara, no entanto, a época indicada para o consórcio com Elisa. Mas A.G. desculpou-se, e pedira mais dois meses de espera. Os negócios não iam bem... enquanto continuavam as visitas à cidade vizinha, e Elisa, fiel e confiante, e sua mãe continuavam preparando o modesto enxoval. Até que, de uma das visitas a A.R., o jovem Sr. A.G. voltou casado com a graciosa Terezinha, sem jamais haver desfeito o noivado com Elisa.
Numa cidade pequena como aquela, tais acontecimentos, há quarenta ou cinqüenta anos passados, repercutiam como raios que explodissem entre a população. Elisa soubera do fato logo após o desembarque do casal, que vinha ali mesmo residir. Mas não pôde, não quis acreditar no que amigos lhe vieram informar. Mas, investigando, logo se inteirou da realidade, e adoeceu. Adoeceu de paixão, de surpresa, d e choque nervoso, de humilhação, de desespero, de decepção, de desilusão, de vergonha, de traumatismo moral. Adveio embolia cerebral e, um mês depois, Elisa morria nos braços de sua inconsolável mãe. Nesse dia, houve revolta entre as pessoas afeiçoadas a Elisa e sua mãe, e Terezinha foi por elas informada do procedimento desleal do homem que a desposara. Confessou ela, então ignorar o compromisso de A.G. com alguém daquela cidade, e não se sentir culpada pelo passamento da jovem. Discutiu calorosamente com o marido nesse dia. Mas tudo passou logo depois, e não mais tocaram no assunto. A hora em que, porém, saía o féretro de Elisa, sua mãe, desolada, em desespero, exclamou – e suas palavras repercutiram tão tragicamente pelo ambiente mortuário da sua pobre sala de visitas que as pessoas presentes estremeceram de impressão e pavor:
“Minha filha, vai em paz para junto de Deus, porque eras um anjo que mereceu o Céu! E fica descansada, porque o miserável que causou a tua morte há de me pagar! Ele não será feliz, porque eu não o deixarei ser feliz!”
E, três meses depois, Madalena, sempre inconsolável, inconformada, morria também. A pobre mulher era cardíaca e não resistiu à dor de perder a filha naquelas circunstâncias.
Cerca de três ou quatro meses depois após o passamento de Madalena, Terezinha começou a beber e embriagar-se. Das primeiras vezes que o fato se verificou, o marido repreendeu-a energicamente. Houve discussões graves, cenas lamentáveis. A.G. acusava-a de Ter o vício desde o tempo de solteira, e encobri-lo hipocritamente; que aquela alegria permanente dos seus modos, aquela vivacidade que todos lhe conheciam, outra coisa não era senão reflexo do álcool ingerido às ocultas. Chorando, Terezinha afirmava que jamais bebera, que somente agora uma necessidade irresistível de beber levava-a a procurar, em qualquer arte, algo com que aplacar aquele terrível desejo que a prostrava. Os melhores médicos da cidade, e até facultativos de São Paulo e do Rio de Janeiro, trataram dela. O marido gastava o que certamente não possuía, a fim de libertá-la do nefando vício. Mas, era tudo em vão. Terezinha continuava a beber, e cada vez embrenhava-se no vício com mais ardor. Mas não era vinho, não era cerveja que a atraíam. Era a cachaça, a cachaça! O terrível veneno que os obsessores preferem para sugerir aos seus desafetos. Terezinha, dIante tão graciosa, agora se embebedava até sair à rua, na ausência do marido, e fazer tolices, e dizer inconveniências, até cair na calçada e entrar em coma alcoólico, como os ébrios comuns. A.G. passava pela vergonha de ser avisado, por qualquer transeunte, de que sua mulher se encontrava caída, completamente bêbada, numa calçada ou numa esquina de rua.
Vieram quatro filhos desde malogrado matrimônio. E Terezinha não deixou de beber, e não atendia aos deveres para com os mesmos. Era preciso, então, que o marido se repartisse entre os próprios negócios e as atenções aos filhos, auxiliado por criadas. Os filhos cresciam verificando a desgraça em que caíra a própria mãe. A.G. arruinou-se como comerciante, sendo necessário submeter-se a um modesto emprego de administrador do cemitério local. E, finalmente, Terezinha já não usava a cachaça pura, mas temperada em cravo e a canela. No ano de 1940, as circunstâncias da vida levaram-me à dita cidade. Visitei o casal, convidou-me a uma conversa particular, já embriagada, e falou-me, debulhada em lágrimas:
“Sr. Frederico, sei que o senhor é espírita e conhece muitas coisas que os outros desconhecem... Pelo amor de Deus, liberte-me desse desejo de beber... é uma força indomável que me arrasta para a bebida! Eu não quero beber! Mas sou forçada a beber!”
Nessa visita, contemplei, então, um casal desajustado, filhos infelizes, um homem vencido pela adversidade, uma mulher arruinada por uma desgraça inconcebível!
Regressando à minha terra, orei durante algum tempo, e, nas reuniões que fazíamos no nosso templo espírita, suplicávamos ao Alto socorro para ela. Mas Terezinha continuou a beber durante mais cinco anos, da mesma forma. Bebeu durante quatorze anos, sem um só dia de trégua!
Certo dia em que o Sr. A.G. se lamentava numa roda de amigos, um deles aconselhou:
“Por que você não leva sua esposa ao Centro Espírita Bittencourt Sampaio? O Sr. Z, seu diretor, é um grande médium, apóstolo do Bem, tem curado muita gente, de variadas doenças...”
A.G. não era espírita, mas, impelido pelo desespero, levou a esposa ao Sr. Z, e explicou-lhe o que acontecia.
Reunidos os três em gabinete apropriado, o médium Z, que, de imediato, compreendeu o que se passava, orou e suplicou a Jesus a presença de um de seus mensageiros a fim de socorrer a paciente. Apresentou-se, então, à sua vidência, o grande, o iluminado espírito de Bittencourt Sampaio, que lhe disse, através da intuição:
“Chama o teu médium... Trata-se de uma obsessão... e faremos o que o senhor permitir.”
Veio o médium – a própria esposa de Z -. Este, incorporado pelo generoso Protetor presente, espalmou uma das mãos sobre a cabeça de Terezinha e a outra sobre o médium. Qual uma faísca elétrica, o obsessor apresentou-se, incorporando-se na médium. Era Madalena, a mãe da pobre Elisa, noiva atraiçoada de A.G.. Conversaram os dois, como de praxe em tais reuniões, sob a assistência de Bittencourt, sempre incorporado em Z. Madalena terminou por submeter-se, não ainda convertida, a perdoar, mas à irresistível autoridade de Bittencourt. Abandonou a presa, que subjugara durante quatorze anos! Terezinha ficou radicalmente curada da embriaguez em uma semana, pois fora necessário ainda fortificá-la através de passes, que Z lhe aplicava, ainda sob influência curativa de Bittencourt Sampaio.
Mas... perguntará o leitor: Por que o Espírito Madalena não obsidiou antes A.G., que foi o traidor de Elisa, e não Terezinha, que ignorava o compromisso por ele mantido com aquela?
E nós ousamos confessar que não sabemos. É possível, porém, que a pobre Madalena, despeitada, odiando aquela que roubara o coração do prometido de sua filha, preferisse ferir Terezinha, para que a dor de A.G. fosse mais cruel. É possível que Terezinha, de modo algum, tivesse tendência para a bebida, sem o saber; e, certamente, se esta foi, realmente, inocente da ação reprovável de A.G., devia, por alguma remota falta, à lei de Deus e, por isso teria mais possibilidade de “dar passividade” a um, obsessor, por ser, com certeza, frágil, além de ser médium, assim expiando um erro do passado, enquanto o marido expiava um crime cometido no presente. Porque foi um crime o que ele praticara contra Elisa. Madalena, certamente, errou. Mas... “quem estiver sem pecado atire a primeira pedra” nessa pobre entidade que, sob o cuidado do grande e iluminado Bittencourt Sampaio, encontrou, sem sombra de dúvida, o verdadeiro caminho a seguir, a fim de redimir-se.

FONTE: Reformador – abril de 1976 – Frederico Francisco

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