Sacerdotes e pastores, homens de fé, sinceros e bons procuraram demonstrar-me que as religiões não estão em crise. Sustentaram que a crise é do homem e não das instituições religiosas. As religiões continuam vivas e atuantes no coração dos crentes - disseram mas os homens mundanos, que se entregam à loucura do século, conturbam a paisagem terrena. É necessário que os homens busquem a Deus, que tenham a experiência de Deus. E essa experiência só é possível quando o homem se desliga do mundo para ligar-se a Deus através da oração e da meditação. Falaram de milhares de pessoas que, no torvelinho da vida contemporânea, procuram todos os dias, a horas certas, o refúgio dos templos ou de um quarto solitário para tentar um encontro pessoal com Deus. Muitas dessas pessoas já conseguiram a audiência secreta com o Todo Poderoso. São criaturas felizes, iluminadas pela graça divina, que sustentam com sua fé inabalável a continuidade das religiões e garantem a sua expansão.
É bom que existam pessoas assim, dedicadas vestais que zelam pelo fogo sagrado. São os últimos abencerrages do formalismo religioso, flores de estufa cultivadas na penumbra das naves sagradas. Cuidam da fé como jardineiros especializados que cultivam uma espécie vegetal extremamente delicada. Acreditam que os seus canteiros floridos darão sementes para semeaduras ilimitadas por toda a superfície da Terra. Não percebem essas almas eleitas que cultivam exclusivamente a si mesmas, ocultam na aparência piedosa seus conflitos profundos e nada mais fazem do que fugir da realidade escaldante da vida. Não escondem a cabeça na areia, pois mergulham de corpo inteiro no sonho egoísta da salvação pessoal.
As práticas místicas do passado provaram mal a sua eficácia. Do Oriente ao Ocidente, multidões de gerações de crentes desfilaram sem cessar, através dos milênios, pelos templos de todas as religiões, convictas de haverem alcançado a salvação pessoal, enquanto hordas ferozes e exércitos em guerras de extermínio brutal cobriam o mundo de ruínas, cadáveres inocentes, sangue e lágrimas. Os que ouviram Deus em audiência particular não se recusaram a pegar em armas para estraçalhar seus irmãos considerados como réprobos e infiéis. Santos Bispos e Padres, pastores calvinistas, crentes populares, fidelíssimos e humildes, não acenderam suas lâmpadas votivas para iluminar as noites trevosas. Preferiram acender fogueiras inquisitórias e, quando o sol raiava, submeter piedosamente os hereges à morte redentora do garrote vil, réplica religiosa à guilhotina profana.
Lembro-me do episódio histórico de Jerônimo de Praga. Depois de haver assistido, pelas grades da prisão, seu mestre João Huss ser queimado vivo em praça pública, foi também glorificado com a graça especial de uma fogueira semelhante. No momento em que as chamas começavam a iluminar a sua figura estranha, caridosamente amarrada ao palanque do suplício (para salvação de sua alma rebelde) viu uma pobre velhinha aproximar-se da fogueira com uma acha de lenha e atirá-la ao fogo. Era a sua contribuição piedosa para a salvação do ímpio. Jerônimo exclamou apenas:
"Santa simplicidade!" Pouco depois estava reduzido a cinzas, para glória de Deus, e suas cinzas foram lançadas ritualmente nas águas do Reno.
Todas as formas de culto, todos os ritos, todos os sacramentos, todas as cerimônias religiosas, todos os cilícios foram empregados nos milênios sombrios do fanatismo religioso, para a salvação da Humanidade. E eis que agora chegamos a um tempo de descrença generalizada, de materialismo e ateísmo oficializados, de hipocrisia pragmática erigida em sustentáculo das religiões fracassadas. Deus falava diretamente com seu servo Moisés no deserto, falava-lhe cara a cara, ordenando matanças coletivas, genocídios tenebrosos, destruição total dos povos que impediam o acesso dos hebreus à terra dos cananeus, que seria tomada a fio de espada. Deus continua falando em particular a seus servos em nossos dias, para a sustentação das igrejas, enquanto o Diabo não perde tempo e alicia milhões de almas perdidas para as práticas do terrorismo, para a matança de crianças e criaturas inocentes, para assaltos e estupros em toda a face da Terra.
A experiência de Deus sustenta os crentes privilegiados e sustenta suas igrejas salvacionistas. E enquanto não chega a salvação, católicos e protestantes matam-se gloriosamente nas lutas fraticidas da Irlanda, em plena era das mais brilhantes conquistas da inteligência humana. Que estranha experiência é essa, que não revela os seus frutos, que não prova a sua eficácia? Deus estaria, acaso, demasiado velho para não perceber a inutilidade dos seus métodos de salvação pessoal em audiências privadas? E os seus servidores, os clérigos investidos de autoridade divina para implantar na Terra o Reino do Céu, porque não avisam o velho monarca da inutilidade milenarmente provada de sua técnica de conta-gotas?
Não seria mais certo tentarmos a revisão dos conceitos religiosos que nos deram a herança de tantos fracassos e tão espantosa expansão do materialismo e do ateísmo no mundo? Todas as grandes religiões afirmam a onipresença de Deus no Universo. Não obstante, todas consideram o mundo (criado por Deus) como profano, região em que as trevas dominam e o Diabo faz a incessante caçada das almas de Deus. É curioso lembrar que nos tempos mitológicos o mundo era considerado sagrado, a vida uma bênção, os prazeres naturais e as leis da procriação eram graças concedidas pelos deuses aos homens. O monoteísmo judaico, desenvolvido pelo Cristianismo, impregnou o mundo com a onipresença de Deus e o mundo tornou-se profano. Se Deus está presente num grão de areia, numa, folha de relva, num fio dos nossos cabelos e numa pena das asas de um pássaro, como, apesar dessa impregnação divina, o homem se defronta com a impureza do mundo? Por que estranho motivo necessitamos de ritos especiais para purificar a inocência de uma criança, se Deus está presente no seu olhar puro e límpido, no seu choro, na meiguice do seu rostinho ainda não marcado pelo fogo das paixões terrenas? E porque precisa o cadáver de recomendação, com aspersão de água benta, se a ressurreição dos mortos se faz, como ensina o Apóstolo Paulo na I Epístola aos Coríntios e como Jesus exemplificou na sua própria morte, no corpo espiritual e não no corpo material?
São esses e outros muitos problemas acumulados nos erros milenares dos teólogos que levam o homem contemporâneo à descrença e ao materialismo, ao ateísmo e ao niilismo. São todos esses erros que colocam as religiões em crise e as levarão à morte sem ressurreição. Considerando-se, porém, esse estranho panorama religioso da Terra numa perspectiva histórica, à luz da razão, compreende-se facilmente que os erros de ontem, até hoje sustentados pelas religiões, foram úteis e necessários nos tempos de ignôrancia, em que os problemas espirituais não podiam ser colocados em termos racionais. Há justificativas válidas para o passado religioso, mas não justificativas possíveis para o seu presente contraditório e absurdo. A tese, mais do que absurda, do Cristianismo Ateu, com que teólogos rebeldes procuram hoje remendar as vestes esfarrapadas das igrejas, só vem acrescentar maior confusão ao momento de agonia das religiões envelhecidas.
O problema da experiência de Deus poderia ser resolvido com um mínimo de reflexão. Se Deus está em nós, e por isso somos deuses em potência, segundo a própria expressão evangélica, porque necessitamos de uma busca artificial de Deus para termos a experiência da sua realidade? Se fomos criados por Deus e se Deus pôs em nós a sua marca, como afirmou Descartes - a idéia de Deus em nós, que é inata - já não trazemos, ao nascer, a experiência de Deus? E se, no desenvolver da vida humana, o homem nada mais faz do que cumprir um desígnio de Deus, assistido pelos Anjos Guardiães, porque tem ele de buscar a Deus através de uma prática artificial e egoísta, procurando preservar-se sozinho num mundo em que a maioria se perde irremediavelmente? Moisés supunha ter ouvido o próprio Deus no Sinai, mas o Apóstolo Paulo explicou que Deus lhe falara através de mensageiros, que são anjos. As pessoas que buscam hoje a experiência de Deus em audiência privada serão mais dignas do que Moisés, não estarão sujeitas a ouvir a voz de um anjo, que tanto pode ser bom quanto mau, pois as próprias igrejas admitem que os anjos decaídos andam à solta pela Terra procurando roubar para o Inferno as almas de Deus? Quem estará livre, na sua piedosa tarefa de salvar-se a si mesmo, de ser tentado pelo Diabo, que tentou o próprio Jesus nas suas meditações solitárias no Deserto?
As práticas místicas do passado não servem para a era da razão, em que nos encontramos na antevéspera da era do espírito. Orar e meditar é evidentemente um exercício religoso respeitável e necessário em todos os tempos. A oração nos liga aos planos superiores do espírito e a meditação sobre questôes elevadas desenvolve a nossa capacidade de compreensão espiritual. Mas o dogma da experiência de Deus através de um pretensioso colóquio direto e pessoal com a Divindade é uma proposição egoísta e vaidosa. Se Deus é o Absoluto e nós somos relativos, a humildade não nos aconselha a ter mais cautela em nossas relaçôes pessoais com a Divindade? São muitos os casos de perturbaçôes mentais, de obsessôes perigosas, de lamentáveis desequilíbrios psíquicos decorrentes de exageradas pretensôes das criaturas humanas no campo das práticas religiosas. A História das Religiões é marcada por terríveis experiências nesse sentido. Basta lembrarmos os casos de perturbações coletivas em conventos e mosteiros da Idade Média, onde os excessos de misticismo transformaram criaturas piedosas em vítimas de si mesmas, sujeitando-as não raro à própria condenação da igreja a que pertenciam e a que procuravam servir.
Os dogmas de fé, que formam a estrutura conceptual das igrejas, são as pedras de tropeço do seu caminho evolutivo. Partindo do princípio de que a Revelação Divina é a própria palavra de Deus dirigida aos homens, as igrejas se anquilosaram em seus dogmas intocáveis, pois a exegese humana não poderia alterar as ordenaçôes ao próprio Deus. Na verdade, a alteração se verificou em vários casos, apesar disso, mas decisões conciliares puseram a última pá de cimento nos erros cometidos. As estruturas eclesiásticas tornaram-se rígidas e as igrejas confirmaram, no seu espírito, a ossatura de pedra de suas catedrais. Vangloriam-se ainda hoje da sua imutabilidade, num mundo em que tudo evolui sem cessar. Os resultados dessa atitude ilusória e pretensiosa só poderiam ser nefastos, como vemos atualmente no lento e doloroso processo de agonia das religiões. Incidiram assim no pecado do apego, contra o qual os Evangelhos advertiram os homens. Apegaram-se de tal maneira à própria vida, que perderam a vida em abundância que Jesus prometeu aos que se desapegassem. As liberalidades atuais chegaram demasiado tarde.
A palavra dogma é grega e seu sentido original é opinião. Adquiriu em filosofia e religião o sentido de princípio doutrinário. Nas Escrituras religiosas aparece algumas vezes com o sentido de édito ou decreto de autoridades judaicas ou romanas. Entre o dogma religioso e o filosófico há uma diferença fundamental. O dogma religoso é de fé, princípio de fé que não pode ser contraditado, pois provém da Revelação de Deus. O dogma filosófico é racional, dogma de razão, ou seja, princípio de uma doutrina racionalmente estruturada. O sentido religioso superou os demais por motivo das conseqüências muitas vezes desastrosas da sua rigidez e imutabilidade. Se falarmos, por exemplo, em dogmática, esse termo é geralmente entendido como designando a estrutura dos dogmas fundamentais de uma religião. Por isso, a adjetivação de dogmática, que implica também o masculino, como nas expressões: pessoa dogmática, posição dogmática ou homem dogmático, significa intransigência de opiniões. O mesmo acontece com o substantivo dogmatismo, que designa um sistema de opiniões intransigentes.
Estas influências religiosas na semântica revelam a intensidade da rigidez a que as igrejas se entregaram, através dos séculos e dos milênios, na defesa da suposta eternidade de seus princípios básicos. Temos, portanto, no dogma de fé, um dos motivos fundamentais da crise das religiões em nossos dias. No Espiritismo, como em todas as doutrinas filosóficas, existem dogmas de razão, como o da existência de Deus, o da reencarnação, o da comunicabilidade dos espíritos após a morte. Muitos adeptos estranham a presença dessa palavra nos textos de uma doutrina que se afirma antidogmática, aberta ao livre exame de todos os seus princípios. São pessoas ainda apegadas ao sentido religioso da palavra. Não há nenhuma razão para essa estranheza, como já vimos, do ponto de vista cultural.
O problema da religião no Espiritismo tem provocado discussões e controvérsias infindáveis, porque essa doutrina não se apresenta como religião no sentido comum do termo. Allan Kardec, discípulo de Pestalozzi, adotava a posição de seu mestre no tocante à classificação das religiões. Pestalozzi admitia a existência de três tipos de religião: a animal ou primitiva, a social e a espiritual. Mas recusava-se a chamar esta última de religião, dando-lhe a designação de moralidade. lsso porque a religião superior ou espiritual, segundo ele, só era professada individualmente pela criatura que superava o ser social e desenvolvia em si o ser moral. Kardec recusou-se a falar em Religião Espírita, sustentando que o Espiritismo é doutrina científica e filosófica, de conseqüências morais. Mas deu a essas conseqüências enorme importância ao considerar o Espiritismo como desenvolvimento histórico do Cristianismo, destinado a restabelecer a verdade dos princípios cristãos, deformados pelo processo natural de sincretismo-religioso que originou as igrejas cristãs.
Essa posição espírita manteve a doutrina e o movimento doutrinário em posição marginal no campo religioso. Para os espíritas, entretanto, a posição da doutrina não é marginal, mas superior, pois o Espiritismo representaria o cumprimento da profecia evangélica da Religião em espírito e verdade, que se desenvolveria sob a égide do próprio Cristo. A religião espírita não se organizou em forma de igreja, não admite sacramentos nem admitiu nenhuma forma de autoridade religiosa de tipo sacerdotal. Não há batismo, nem casamento religioso no Espiritismo, nem confissões ou indulgências. Todos esses formalismos são considerados como de origem pagã e judaica. Entende-se o batismo como rito de iniciação, que , Jesus substituiu pelo batismo do espírito, sendo este considerado como a iniciação no conhecimento doutrinário, feita naturalmente pelo estudo da doutrina, sem nenhum ato ritual. Admite-se também que o batismo do espírito, segundo o texto do Livro de Atos dos Apóstolos sobre a visita de Pedro a casa do centurião Cornélius, no porto de Jope, pode completar-se, nos médiuns, quando se verifica espontaneamente, com o desenvolvimento da mediunidade.
Essa posição espírita no campo religioso causou numerosas dificuldades aos espíritas no tocante às relações de instituições doutrinárias com os poderes oficiais, particularmente para a declaração de religião em documentos oficiais, para o resguardo dos direitos escolares em face do ensino religioso, para a declaração de religião nos recenseamentos da população, até que medidas oficiais reconheceram esses direitos.
Em compensação, o Espiritismo ficou livre das conseqüências da crise religiosa, que não o atingiram. Sua contribuição para a racionalização dos princípios religiosos, para a reintegração da Religião no plano cultural, particularmente no tocante aos problemas científicos da atualidade, é realmente substancial. No campo filosófico a posição espírita é também vanguardeira, pois desde o século passado sua filosofia se apresenta como livre dos prejuízos do espírito de sistema, conservando-se aberta a todas as renovações que decorrem de descobertas cientificamente comprovadas. Livre da dogmática religiosa e da sistemática filosófica, apoiada inteiramente na pesquisa científica, a doutrina está de fato a cavaleiro nas crises da atualidade.
J. Herculano Pires - Agonia das Religiões
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